Por Mano Ferreira

Apontamentos sobre liberdade de imprensa a partir da possível demissão de Raquel Sheherazade

Estão polvilhando notícias na internet sobre um suposto afastamento da jornalista Raquel Sheherazade do posto de âncora do jornal do SBT. As informações dão conta de que a possível medida da emissora se deve à pressão do governo federal, um dos principais anunciantes do canal – e que, mais do que isso, detém controle sobre o sistema de concessões públicas que atualmente configura a televisão aberta brasileira. Afora minhas críticas à atuação da âncora, essa questão merece ser analisada sob várias perspectivas.

A primeira delas diz respeito a atividade jornalística. Onze entre dez jornalistas diriam que o cenário ideal é aquele em que as pressões do departamento comercial não interferem na linha editorial e no conteúdo jornalístico dos veículos. Na prática, porém, a concretização desse ideal é algo mais raro do que professores libertários em cursos de jornalismo.

É preciso atentar a uma sutileza na formatação desse mercado. Diferentemente da maior parte das esferas profissionais, a atividade jornalística não é financiada majoritariamente através de seus consumidores diretos, mas principalmente através de anunciantes. O veículo jornalístico negocia com os seus anunciantes o valor da quantidade de público que consegue atrair, de modo que os consumidores do conteúdo tornam-se uma espécie de ativo do veículo, assim como os valores defendidos pela linha editorial e os detalhes do modo como se retratam os temas.

Nesse contexto, alguns fundamentos econômicos nos ajudam a entender os motivos por trás dessa raridade de concretização do ideal de autonomia do conteúdo. Dentre outras coisas, há uma pré-condição para a realização de um jornalismo realmente independente: o suporte de empresas sólidas de jornalismo inseridas em mercados midiáticos realmente maduros. O jornalista precisa estar inserido numa empresa com estrutura física e recursos humanos capazes de subsidiar o desenvolvimento de seu trabalho. Para isso, dentre outras várias características específicas da atividade jornalística, é preciso haver uma diluição da representatividade proporcional da verba de cada anunciante em relação ao montante geral do orçamento da empresa.

A questão é clara: uma empresa jornalística precisa conseguir ser financiada por diversas fontes diferentes de recurso, ou não conseguirá adquirir autonomia em relação a pressão dos interesses de fontes específicas de financiamento. Em outras palavras: se um orçamento é composto por um único anunciante, evidentemente ele terá total poder de influência nos rumos do produto final. Por outro lado, se houver dez anunciantes com iguais parcelas de contribuição à constituição do orçamento, menor será o poder de pressão de cada um por interferência no conteúdo editorial. A conclusão é simples: quanto mais diversificadas forem as fontes de financiamento, maior será a autonomia de conteúdo e a possibilidade de efetivar a livre expressão da linha editorial desejável pelo veículo.

A pergunta que ressoa agora: como viabilizar a diversificação das fontes de financiamento da mídia? Eu não vislumbro outra resposta possível se não uma libertação profunda do sistema econômico, com ampla desburocratização e redução tributária para todos os setores, além da inclusão de agentes atualmente excluídos e uma consequente diversificação dos mercados. E nesse ponto acrescento um adendo especial: quanto mais diversificado e competitivo for o cenário econômico, maiores serão os incentivos para que mais agentes façam anúncios nos jornais buscando evidência junto a seus respectivos públicos e, assim, maior e mais livre será o mercado jornalístico.

Vale lembrar que além do gigantismo estatal travando a economia de modo geral, o contexto atual ainda conta com uma regulação altamente restritiva da publicidade, que é exatamente proporcional aos avanços da arrogância paternalista do estado. A infinidade de limitações a propagandas vão desde produtos considerados perigosos, como cigarros e bebidas, até itens com destinação ao público infantil.

É ético haver pressão do anunciante sobre o conteúdo do jornal?

Antes de tudo é importante lembrar que nem todo anúncio em veículos de comunicação é feito com objetivo de exercer influência sobre o seu conteúdo editorial. Grande parte das vezes – e não conheço alguma pesquisa que tente medir qual a representatividade numérica das diferentes posturas -, a intenção do anunciante é somente promover a sua marca, tornar-se mais conhecido diante de seu público-alvo ou agregar os valores do veículo à sua identidade institucional.

Se colocamos a questão sob o prisma do anunciante, utilizar-se do recurso financeiro enquanto elemento de pressão por um conteúdo favorável aos seus interesses é, sim, uma postura legítima. Afirmar o contrário, afinal, seria considerar que existe algum tipo de obrigação de alguém para financiar algo que vai contra o seu próprio interesse.

Fazendo um exercício especulativo e chegando um pouco mais longe, um cenário de mercado liberto e ampla diversidade de veículos e fontes de financiamento poderia significar um amadurecimento da sociedade civil também em termos de capacidade de pressão sobre os veículos de imprensa. Poderíamos ter um exercício concreto e legítimo de controle social da mídia (no sentido original, sem a participação do estado) através da conjunção de anunciantes, que na expectativa de vincular suas imagens a valores socialmente elevados se transformariam em fiscais da qualidade e honestidade jornalísticas. Falo de um ciclo no qual os interesses isolados de anunciantes seriam blindados pela diversidade, e a interseção de interesses comuns dos anunciantes somariam forças na constituição de valores sociais expressivos.

Dessa forma, o fato da pressão de anunciantes, em conjunto, conseguir derrubar uma âncora de jornal pode ser bastante positivo, já que expressaria a capacidade de controle social da mídia. Quando o caso em questão afastasse uma profissional que chama bastante atenção por defender a tortura, atacando os direitos humanos, esse afastamento se tornaria ainda mais louvável.

Por outro lado, se o anunciante em questão é um único, isolado, devemos atentar bastante cuidadosos pelas grandes chances de haver um interesse mesquinho. Se esse único anunciante é o governo, meu amigo/minha amiga, então acenda todas as luzes do perigo. E se a profissional afastada por pressão do governo federal for ainda mais conhecida por suas críticas cotidianas ao governo, então nós devemos denunciar a perversidade do truque: é claramente o que parece acontecer no caso Raquel Sheherazade, se de fato forem confirmadas as especulações.

Utilizando-se de recursos públicos, os agentes privados inseridos no governo (sejam eles políticos ou burocratas) perseguem os seus próprios interesses e, a cada oportunidade, retaliam aqueles que não estejam alinhados aos seus objetivos. Dada a imensa desproporcionalidade do poder econômico e político do estado (que não se compara a qualquer outro tipo de anunciante), cria-se um ciclo vicioso de cerceamento à liberdade de expressão, em claro teor autoritário, onde progressivamente se formata a consolidação de um pensamento único.

Nesse sentido, por maior que seja a atrocidade proferida por Raquel Sheherazade, nada é mais perigoso e opressor do que a censura de agentes assentados no estado em busca de seus interesses. E não é de hoje que esse ciclo nefasto ocorre e se fortalece. Ultrapassa o R$ 1 bilhão a monstruosa verba de publicidade do governo federal – dinheiro todo retirado dos bolsos e das mesas dos mais pobres, unicamente para pagar a propaganda da elite política que se reveza no poder, comprando a benevolência e o espírito crítico da mídia. Sem falar na manipulação de cobranças tributárias e no viciado sistema de concessão pública.

Por tudo isso é que, hoje, no Brasil, os inúmeros casos de afastamento de jornalistas – muito mais comum nos rincões do país – apenas compõem os tristes elementos das várias noites repetidas, sombrias e censuradas deste estado superpoderoso.

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Mano Ferreira é jornalista, integrante do Café Colombo e co-fundador da rede Estudantes Pela Liberdade no Brasil. Tem interesse em filosofia política, comunicação, estética e comportamento. Pesquisa a relação entre as obras do documentarista Eduardo Coutinho e do filósofo Karl Popper, mas se percebeu amante da liberdade bem antes de conhecê-los, viajando além da conta num quadro de Renné Magritte.

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