Por Leonel Caraciki
Na noite do dia 31 de Março de 1964, o general Olímpio Mourão Filho decidiu abrir os portões de seu quartel em Juiz de Fora e marchar com suas tropas em direção ao Rio de Janeiro. O episódio, frequentemente citado como o estopim do movimento que levaria à implantação do Regime Civil-Militar que duraria vinte e um anos, é somente uma pequena parte do cenário político da época. Ao contrário do que o senso comum propõe, o ofício do historiador não é somente a coleção de datas e eventos organizados em uma linha cronológica. A História como disciplina pede uma análise mais profunda dos acontecimentos que dificilmente podem ser separados dos dilemas do tempo presente de quem os analisa. Em 2014, na véspera do aniversário de cinquenta anos do golpe e poucas semanas após as mui desastradas reencenações da “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, proponho algumas ponderações com base em uma releitura da história política do Brasil.
Na década de 1960, a experiência democrática brasileira era absolutamente jovem: os mecanismos representativos do período republicano que vigorou de 1889 até 1930 eram insípidos e a pequena facção liberal disputava ideias com os positivistas e os militares. Estes dois grupos por sua vez se dividiam em autoritários e autoritários exaltados, sendo a diferença fundamental somente o pudor em se utilizar do patrimônio do Estado em benefício próprio. Naquele momento Rui Barbosa já alertava contra a ideia de que o Exército poderia ser uma força a resguardar a República. Em uma demonstração clara de como a tradição liberal se preza sobretudo por limitar as paixões e por frear o despotismo do Leviatã, o nosso “Águia de Haia” discursou contra o militarismo que permeava o pensamento político da época, dizendo:
“Entre as instituições militares e o militarismo vai, em substância, o abismo de uma contradição radical. O militarismo, governo da nação pela espada, arruína as instituições militares, subalternidade legal da espada à nação. As instituições militares organizam juridicamente a força. O militarismo a desorganiza. O militarismo está para o exército como o fanatismo para a religião, como o charlatanismo para a ciência, como o mercantilismo para o comércio, como o cesarismo para a realeza, como o egoísmo para o eu. Elas são a regra; ele, o desmantelo, o solapamento, a aluição dessa defesa, encarecida nos orçamentos, mas reduzida, na sua expressão real, a um simulacro”[1].
As palavras proféticas de Rui Barbosa iriam ecoar em outros momentos da história brasileira. A frágil república foi solapada pela Revolução de 1930, que substituiria a cleptocracia por um capitalismo de compadrio, do qual sentimos os resultados até os dias de hoje.
O governo de Getúlio Vargas reforçou a mentalidade estatista para justificar a necessidade de desenvolvimento nacional, que deveria ser atingido mesmo às custas de se implantar uma ditadura autoritária que não se furtou a utilizar de alguns elementos do fascismo para alcançar suas metas – o corporativismo, uma polícia secreta altamente repressora e o culto aos ícones do Estado: o hino, as bandeiras, a figura do líder. A queda do Estado Novo, desgastado pela contradição de ser uma ditadura que enviou tropas para lutar contra ditaduras na Europa em nome da liberdade, não se deu por um movimento natural de expansão de ideias liberais. Os opositores do regime varguista não tiveram dilemas morais de se aliar às Forças Armadas para depor o presidente. Em 29 de outubro de 1945, o Alto Comando do Exército depõe Vargas e inicia-se a experiência democrática que durará até o ano de 1964.
Os problemas foram diversos: o suicídio de Vargas, uma tentativa de golpe antes da eleição de Juscelino Kubitschek, cuja posse só foi garantida por um contra-golpe que procurou manter o processo legal de transição do poder, a renúncia de Jânio Quadros para finalmente chegarmos à posse de João Goulart em 1961. O observador político com alguma experiência e uma boa dose de perspectiva histórica rapidamente pode deduzir que o cenário era bastante tenso. É claro que graças à perspectiva histórica temos a segurança de ter visto o que deu errado. Na época era diferente: a paranoia anticomunista da Guerra Fria caía como uma luva aos opositores de Jango, herdeiro da tradição política de Getúlio Vargas. Criou-se uma rede de institutos e grupos especializados em fomentar propaganda anticomunista, assim como propagandas contra o governo de Goulart.
Do lado da esquerda, a arrogância em acreditar no movimento inexorável das “revoluções” comunistas fez com que seus alguns de seus líderes fomentassem a ideia da ação armada como solução possível, emulando o movimento recém vitorioso em Cuba. Documentos mostram que Francisco Julião, líder do movimento das Ligas Camponesas, procurou treinamento para seus homens na República Popular da China e em Cuba. Os mesmos documentos mostram que as tentativas de treinamento foram um fracasso.
Dentro das Forças Armadas existiam divergências se deveria ou não haver um golpe. A inabilidade política de João Goulart, crescentemente rejeitado pela opinião pública, dependente de um Congresso cada vez mais paralisado, e o cenário econômico cada vez mais ameaçado pela inflação e pela tentativa do Estado de aumentar sua ingerência no mercado para “salvá-lo” foram outros fatores que influenciaram o clima de golpe.
“O homem que troca liberdade por segurança não merece nenhuma das duas” é uma famosa frase atribuída a Benjamin Franklin. É, juntamente com o discurso de Rui Barbosa, uma excelente análise sobre os acontecimentos que viriam a ocorrer. A “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, mesmo que não pedindo diretamente pela intervenção militar, acirrou os ânimos políticos. Com a facção golpista vitoriosa dentre as fileiras das Forças Armadas, lideranças políticas conservadoras, setores do empresariado e outros insatisfeitos com a presidência de Goulart deram início ao Golpe Civil-Militar de 1964. A denominação “civil-militar” enfatiza a natureza do golpe: foi uma orquestração entre setores da sociedade civil e parte das Forças Armadas. Não foi um plano completamente concebido dentro de quartéis.
O governo americano, comprometido com a contenção da expansão do socialismo soviético, viu a iniciativa com simpatia. Mas ao contrário de uma visão esposada pelo marxismo vulgar, o movimento golpista não surgiu em Washington. Era profundamente brasileiro em sua essência. Telegramas enviados por Lincoln Gordon, embaixador americano no Brasil na época do golpe, deixam claro que os militares eram organizados e que caso houvesse um movimento golpista, seria vitorioso antes de qualquer necessidade de intervenção americana.
Seguiu-se um regime que tinha como objetivo a restauração da ordem, da economia, da liberdade política e das instituições democráticas. Para alcançar tais metas, os militares baixaram uma série de medidas que dinamitaram os direitos coletivos, individuais, civis e políticos, promoveram expurgos contra os “indesejáveis do regime” (todos os que levantavam a voz para criticá-lo) e desmontaram os resquícios de estrutura democrática do país.
Desde as cassações políticas do AI-1 à solução autoritária imposta pelo Ato Institucional Número Cinco, o Regime Militar procurou silenciar a oposição e negar por completo os direitos do indivíduo na sociedade. Negou-lhe o direito de reunir-se em assembleia, o que o destitui de formas de representação política, de expressar suas opiniões ao colocá-lo sob censura prévia e com o aparato do DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna, criado em 1969), a polícia política do regime, colocou o cidadão sob eterna suspeita, que acabou com o princípio liberal de presunção de inocência. O fim de eleições diretas só confirmou o autoritarismo adotado como solução: a estranha ideia de que terminar com todas as liberdades seria alguma forma de assegurar liberdades.
Na economia, resultados igualmente catastróficos. O capitalismo de compadrio se tornou política de Estado, juntamente com um dirigismo ferrenho que dominava a mentalidade de setores ultranacionalistas das Forças Armadas. Saiu de uma série de favores especiais a certas empresas próximas ao governo, para se tornar uma quimera durante o período Geisel (1974-1979) em que se adotou um pensamento econômico quase que mercantilista, filho bastardo de Friedrich List, Karl Marx e a teoria da dependência[2], mas que ainda reconhecia que o capitalismo era importante para seu desenvolvimento. Ansiava por ter um mercado desenvolvido e uma maior participação na economia mundial, mas para isso acreditava que o punho de ferro do Estado iria dirigir a mão invisível do mercado. As “obras faraônicas” geraram um buraco nas contas do governo e as políticas econômicas sucessivamente fracassaram em seus objetivos. A desorganização, a legislação burocrática interminável e a ineficiência da economia brasileira tem relação direta com o período militar, sem contar a crise que o país passou durante os anos 1980 até meados dos anos 90.
Na política externa, a atuação do regime foi igualmente problemática, ainda que em alguns momentos tenha lampejos interessantes no que toca a autonomia do país no cenário internacional. Ainda assim, toda sua execução foi marcada por uma série de problemas. Seu primeiro chanceler, Juracy Magalhães, declarava que: “O que é bom pros Estados Unidos é bom para o Brasil”. Rompeu com as posições de neutralidade e não-intervenção historicamente defendidas pelo país ao enviar tropas para a ocupação americana da República Dominicana. Ao perceber que a aliança com os Estados Unidos não proporcionaria os frutos esperados, os generais e os executores da política externa se convenceram que Brasil e Estados Unidos estavam fadados a não se entender pois havia uma “rivalidade emergente” entre os países.
O Brasil, na cabeça dos militares, estava em rota de colisão com os interesses americanos. Procurou o apoio de países da Europa Ocidental em um primeiro momento, para depois procurar a União Soviética e a República Popular da China. Com a crise mundial de abastecimento de combustíveis fósseis dos anos 1970, aproximou-se de ditadores do Terceiro Mundo e dos países produtores de petróleo do Oriente Médio, sem resultados positivos. Visando a entrada no jogo nuclear, burlou a vigilância dos países detentores de tecnologia nuclear e assinou um acordo em separado com a Alemanha, desenvolvendo secretamente um projeto de arma nuclear. Com tais atitudes conseguiu antagonizar os EUA e seus aliados e não conseguiu o apoio total dos regimes terceiro-mundistas, que desconfiavam que uma ditadura militar comprometida com a luta anticomunista poderia ser aliada estratégica de países simpáticos a Moscou. Terminou o regime como um país pouco confiável.
Por último, seu legado mais perverso: a tortura e os métodos violentos de combate à oposição. Muitos diriam que havia necessidade de se combater a luta armada da esquerda que irrompia sob a forma de guerrilha urbana e rural. Mesmo que tais grupos ameaçassem a estabilidade do regime, as práticas descritas recentemente pelo Coronel Paulo Magalhães são absolutamente inaceitáveis. A Ditadura usou a tortura de maneira intensa e isso era sabido por todos os quadros do regime. O coronel detalhou práticas de como sumir com corpos que envolviam jogar o cadáver em um rio, preferencialmente com a cabeça cortada. Também jogaram corpos no mar ou no incinerador. Segundo o ex-torturador, que menciona que “gosta de decapitar”, ao jogar o corpo em um rio era necessário pesá-lo para saber a quantidade de pedras que iriam dentro do saco em que colocavam o assassinado, pois não havia o risco do cadáver ficar preso no fundo do rio. O coronel era o responsável por treinar torturadores em diversas cidades do país[3].
É desnecessário dizer que com tal falta absoluta de consideração da dignidade da pessoa humana, outros abusos se tornariam corriqueiros. No Rio de Janeiro temos a famosa Scuderie Detetive Le Cocq, fundada em 1965. A associação era um grupo quase paramilitar de policiais do Rio de Janeiro que se deram a missão de “limpar a cidade de bandidos”. Na prática era um esquadrão da morte. Excessos de brutalidade policial, mortes não-investigadas e a lógica de “bandido bom e bandido morto” são seus legados.
Por último, a ideia de que não havia corrupção durante o Regime Militar não se sustenta. Ainda que os generais tenham sido pessoalmente idôneos na condução da política, casos de desvios de verbas se repetiram por diversas vezes: a Rodovia Transamazônica faturada muito acima do seu custo real, a ponte Rio-Niterói que custou milhões a mais do que o projeto inicial e o escândalo da CAPEMI (Caixa de Pecúlio dos Militares), que ganhou licitações de exploração de madeira no Pará em circunstâncias suspeitas. Dos mil cento e cinquenta e três processos de investigação de corrupção no regime, mil foram arquivados e nem todos os restantes foram executados. As práticas de fraudar laudos médicos para dar ares de legalidade às atividades de torturadores foram incentivadas pelo regime[4].
Tais apontamentos sobre a história da república brasileira, sobre o envolvimento dos militares com a política e sobre o fracasso completo da empreitada ditatorial das Forças Armadas são bastante pertinentes em 2014. Os que pedem por “intervenção militar” provavelmente ignoram tais fatos ou simplesmente não querem ver. O libertarismo/liberalismo mostra bem é inútil criar ilusões acerca de déspotas iluminados ou de que o Estado, uma vez autocrático, vai entregar seu poder facilmente ou de maneira desinteressada.
É claro que no cenário atual, com o governo sendo comandado por um partido historicamente filiado à esquerda política, temos comemorações que exaltam uma “memória de uma esquerda democrática” que rigorosamente nunca existiu. Os grupos marxistas-leninistas-maoístas não teriam o menor problema em derrubar os militares e formar uma ditadura totalitária como as vistas na União Soviética, China e Camboja. Todavia, isso não desculpa os crimes brutais cometidos pelo aparelho de repressão empregado pelo regime. As intenções e aspirações dos esquerdistas, assim como seus crimes, não justificam os abusos reais que foram repetidamente levados a cabo nos porões do regime. Boa parte dos absurdos da ditadura militar foram convenientemente apagados pela Lei de Anistia que permitiu que os militares construíssem uma imagem positiva de si mesmos.
O papel do historiador não é julgar, o que não quer dizer que seu trabalho não tenha posições políticas. O alarme contra o envolvimento de militares na política já havia sido dado por Rui Barbosa muito antes de 1964. Em um país onde o liberalismo não deu o ar de sua graça, a opção pelo autoritarismo e pelo Estado interventor foi a norma. Acredito que após os vinte e um anos de ditadura, e ao ver as pouquíssimas pessoas que aderiram a Marcha em março de 2014, que alguma lição tenha ficado. Que o aniversário do Golpe de 1964 seja um lembrete que a liberdade importa, que opções autoritárias nunca são válidas e que o lugar dos militares é nos quartéis.
[1] PAIM, Antônio. História do Liberalismo Brasileiro. P. 98. Disponível em: http://www.institutodehumanidades.com.br/arquivos/historia%20do%20liberalismo%20brasileiro_completo.pdf
[2] A descrição bastante acertada foi emprestada de: SPEKTOR, Matias. Origens e Direção do Pragmatismo Ecumênico e Responsável. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbpi/v47n2/v47n2a07.pdf
[3] Disponível em: http://oglobo.globo.com/pais/vitimas-da-casa-da-morte-foram-jogadas-dentro-de-rio-diz-coronel-11940779
[4] “Moralismo Capenga”. Disponível em: http://www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/moralismo-capenga. A falta de referências sobre o assunto é explicada pelo acesso difícil aos arquivos e pelo recente interesse sobre o tema da corrupção durante o regime.
Leonel Caraciki é historiador. Mestre em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, pesquisador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos (NIEJ/UFRJ) e tem interesses em relações internacionais, história contemporânea e do Oriente Médio. Atualmente, dedica seus estudos a história do liberalismo e libertarianismo.