“Conhecemos o caminho maldito: rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio, o cemitério. A persistência da Constituição é a sobrevivência da democracia. Quando, após tantos anos de lutas e sacrifícios, promulgamos o estatuto do homem, da liberdade e da democracia, bradamos por imposição de sua honra: temos ódio à ditadura. Ódio e nojo.” ~ Ulysses Guimarães (1988, na promulgação da Constituição)

As virtudes do pacto de 1988

O atual processo eleitoral foi marcado pela rejeição ao pacto constitucional firmado em 1988. Por um lado, Jair Bolsonaro levanta uma bandeira saudosista do regime pré-constitucional, em que militares controlavam o país com muito menos restrições legais à vontade política. Por outra parte, o Partido dos Trabalhadores, ecoando as autocracias de nossa circunvizinhança, propõe numa nova constituição e fala em limitar a ação dos mecanismos de controle independente – como o Ministério Público e a Polícia Federal – que provocaram seu ocaso após um longo período de dominância política. Em distintos graus e com muitos nuances, esses polos antagônicos são similares extremados em sua rejeição ao pacto constitucional.

É importante notar que, se a polarização entre o petismo e o anti-petismo não é nova, hoje ela alcançou uma radicalização muito superior às eleições anteriores. Há quatro anos, tivemos uma amostra desse tipo de comportamento. Dilma não se furtou de fazer uma campanha suja contra Marina Silva, de negar que o país já passava pelo que viria a se tornar a maior recessão da história e fazer um estelionato eleitoral de grandes magnitudes. Por outro lado, Aécio não reconheceu a sua derrota, levou a disputa das urnas aos tribunais e apostou numa estratégia política de aprofundamento da crise.

Mas, mesmo naquele momento, não havia dúvida de que o pacto constitucional seria mantido. Hoje, estamos caminhando para um cenário ainda mais radical e perigoso. A disputa atual significa a negação do mais longo e vitorioso projeto político do país. O projeto que gira ao redor da Constituição de 1988 significa a escolha do Brasil em ser uma democracia de mercado, calcada em respeito aos direitos e liberdades individuais, na prevalência da livre iniciativa e na criação de uma ampla rede de proteção social aos mais vulneráveis.

Embora imperfeito e com idas e vindas, o Brasil criado em função desse projeto resultou na estabilização econômica e na vitória sobre a hiperinflação; no estabelecimento de eleições livres e justas por três décadas; na independência do Judiciário, da Polícia Federal e do Ministério Público; e nas mais significantes e efetivas políticas econômicas e sociais para a redução da pobreza. No período de 1993 a 2013 vivenciamos a saída da pobreza extrema de quase 30 milhões de brasileiros, a queda na desigualdade de renda e o aumento no índice de desenvolvimento humano mediano de municípios brasileiros em mais de 50%. O período do pacto constitucional é o de maior inclusão à prosperidade da história do Brasil.

“Não é a Constituição perfeita, mas será útil, pioneira, desbravadora. Será luz, ainda que de lamparina, na noite dos desgraçados. É caminhando que se abrem os caminhos. Ela vai caminhar e abri-los. Será redentor o caminho que penetrar nos bolsões sujos, escuros e ignorados da miséria” (Ulysses Guimarães, 1988)

Os perigos da rejeição da Constituição

Bolsonaro e Haddad não representam um passo em direção a essa luz. São vítimas e culpados da mesma tragédia. São vítimas de serem presidentes que vão começar com uma virulenta oposição aos seus mandatos, incapazes de de gerarem uma pacificação e resolução à divisão política que ameaça as instituições brasileiras. Por outro lado, tal virulenta oposição foi gestada e promovida justamente pelos grupos que sustentam Bolsonaro e Haddad e que estes representam. A resposta a este impasse tem sido fugir de consensos que giram ao redor do pacto social da Constituição de 1988.

Bolsonaro é um passo para longe dessa luz. Tudo que ele apresenta e representa é interpretação negativa do petismo. Assim, apresenta-se como um liberal econômicamente e um estatista nos costumes porque acredita que o petismo foi estatista econômicamente e liberal nos costumes. Essa auto-imagem é contraditória e é contraditória com a história de Bolsonaro. Uma política econômica liberal na mão de um presidente que denfende a ditadura militar, notoriamente iliberal e estatista, não é viável e sustentável. Não é crível acreditar em um congressista que continuamente votou contráriamente a projetos liberalizantes vai fazer o governo mais liberal da história brasileira.

Além disso, o estatismo nos costumes que se desdobra em diversas áreas (segurança, arte, vida privada, educação) é mais amplo do que o anti-petismo. É uma negação de um consenso que permeia a constituição de 1988 de garantias fundamentais, defesa dos indivíduos a partir dos ideais dos direitos humanos que emergiu para cicatrizar os traumas do regime autoritário. Há sem dúvidas falhas e fracassos nessas áreas desde a redemocratização, mas a negação desse processo e a escolha por um projeto mais estatizante que signifique maior presença e repressão por parte do Estado na utilização da força que lhe cabe não é efetivo nem moralmente desejado. As democracias consolidadas caminham para um reconhecimento que mais repressão indiscriminada não gera um resultado de solução do problema de segurança pública.

O PT de 2018 é, também, um salto para longe da luz. O caminho para escuridão petista foi justamente a consequência natural da sua incapacidade de reconhecer os seus próprios erros. Se o PT não errou – o salto lógico é que o erro tem de estar na Lava Jato, no Ministério Público, no Judiciário ou no Congresso, dentre outros. É daí que deriva, naturalmente, a rejeição de diversos consensos que rodeiam o pacto de 1988. Assim, o petismo já ingressa no processo eleitoral questionando sua legitimidade, acusando-o de “fraude” e afirmando que, enquanto a Venezuela vive uma democracia, o Brasil vive um “estado de exceção”. Ele se distingue de sua postura passada de respeito aos resultados eleitorais quando perdeu nos anos 90; de manutenção das bases positivas do governo de FHC; e de gestor de avanços institucionais como o aumento da capacidade de atuações de órgãos de controle.

Nos últimos tempos, porém, viu-se um a ascensão de um petismo que emerge com o tortuoso caminho que foram os seis anos de Dilma. Um grupo que corroeu as bases do que era o maior e mais importante partido para ser hoje a base de um sebastianismo ao redor de Lula e que, um dos seus ex-grandes líderes, chegou a perguntar “[s]omos um partido ou uma seita?”. Um petismo que distorceu o processo eleitoral no que é conhecido como um dos maiores esquemas de corrupção da história. Um petismo que conscientemente e ativamente busca enfraquecer os poderes que servem como garantidor de pesos e contrapeso, algo fundamental em qualquer regime democrático.

Esse mesmo ‘novo’ petismo apostou em uma cartilha econômica populista, irresponsável e elitista que jogou fora o grande esforço de desenvolvimento sustentável que perdurava desde o Plano Real e foi a herança positiva do governo Lula. Esse novo petismo é responsável pela situação pela enorme crise que vivemos hoje. Podemos estar nos arriscando a vivenciar mais uma vez uma política econômica como a Dilma. E, mais importante, com um país que seria incapaz de aguentar mais um desastre econômico semelhante.

A constituição de 1988 e as consequências que derivaram desse pacto político tem os seus problemas, mas é, inegavelmente, o mais bem-sucedido período na história política brasileira. A vitória de Bolsonaro e Haddad, hoje, colocam em risco esse pacto. Ambos são os maiores representantes de uma evolução radical que põe em cheque elementos sociais, políticos, econômicos e, até mesmo, civilizacionais do consenso gerado em 1988.

Entre duas escolhas inaceitáveis, a opção moralmente aceitável é não fazer nenhuma escolha.

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