No ano de 2017, chegamos ao fim de uma das maiores crises econômicas da história do Brasil. Após três anos de queda da renda por brasileiro – com aumento do desemprego, queda dos salários e alta inflação -, o país saiu do fundo do poço para algum alívio econômico. A situação começou a piorar cada vez menos durante 2016 e hoje é de melhora nesses três fronts: a linha laranja do gráfico abaixo mostra o desempenho do IBC, índice do Banco Central que estima o PIB em base mensal; em preto está a trajetória do CAGED, cadastro federal de empregos com carteira assinada; em vermelho, por fim, o IPCA, principal índice de inflação ao consumidor do IBGE.

Quais foram os efeitos da recuperação econômica sobre a população? As respostas podem ser dadas pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua). Essa pesquisa, apesar de lançada trimestralmente, só pergunta aos moradores sobre seus rendimentos além do trabalho a cada final de ano – e, na semana passada, divulgou esses dados referentes ao último trimestre do ano de 2017, que podem ser utilizados em comparação aos do último trimestre de 2016.

Transferências do governo via previdência ficam mais importantes, em detrimento de programas sociais  

Dividindo a renda do domicílio pelo número de pessoas que dependem desse dinheiro, fica clara a melhora. A renda domiciliar per capita cresceu R$ 1247,72 em 2016 para R$ 1300,18 no ano seguinte, descontada a inflação de 2017. As últimas edições da PNAD Contínua Anual permitem uma visão mais detalhada de quem ganhou com esse aumento, e como. É também possível decompor a renda total em quatro fontes:

  • Renda do trabalho
  • Renda de transferências do governo via INSS (aposentadorias e pensões)
  • Renda de transferências do governo via programas sociais (Bolsa Família, BPC, Aposentadoria Rural e outros)
  • Renda de outras fontes

Todas essas parcelas cresceram, com exceção dos programas sociais (laranja), que caíram em termos reais 3%. A renda via INSS (vermelho) teve alta de 4,9%. É preocupante quando lembramos que ambos disputam o mesmo orçamento público. Sendo mais protegida pela Constituição, a renda de aposentadorias é melhor protegida em períodos de aperto nas contas públicas, em detrimento dos programas sociais.

Essa é uma equação de poder preocupante do ponto de vista da justiça social. Enquanto as aposentadorias do INSS beneficiam uma população que teve carteira assinada durante longos períodos, o Bolsa Família exige renda inferior a 85 reais por pessoa para famílias sem filhos, ou 140 reais para famílias com integrantes abaixo de 17 anos. Faz pouco sentido que o programa mais importante para a população vulnerável seja menos protegido pela Constituição, mas assim ocorre no Brasil.

A previdência não é nada mais do que uma transferência de renda e, desde 2014, o Governo tem se endividado para fechar o orçamento. Os gastos previdenciários são os que mais crescem no país. Na prática, portanto, estamos sacrificando a renda futura com dívidas para garantir o cumprimento das regras previdenciárias. É possível que isso explique também a grande alta da renda de outras fontes (68,5%), que agrega ativos financeiros, como títulos da dívida do governo.

Voltamos à dinâmica positiva nos movimentos entre “classes”

É possível comemorar também que, no último ano, mais pessoas entraram na Classe Alta e Média do país, e menos na Baixa. A classificação foi criada pela Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, durante o primeiro mandato do Governo Dilma, e ficaram famosas como meios de divulgação da positiva dinâmica social dos anos 2000. Em 2016, a Classe Alta incluía 23,9%, porcentagem que subiu 24,3% no ano passado. Ao mesmo tempo, houve um pequeno aumento da Classe Média, de 49,5% para 49,6%. Esse aumento somado de meio porcento foi compensado por aproximadamente um milhão de pessoas a menos na Classe Baixa – que caiu de 26,6% para 26,1% da população, como mostra o Gráfico abaixo.

Nem toda diminuição da pobreza é igual

O critério para definir pobreza passa longe do óbvio, ainda mais quando nos restringimos à renda.

Se olharmos para um dos indicadores mais comuns, que mede a pobreza extrema pela população com renda inferior a um dólar, 2017 parece um ano de más notícias. Tivemos uma pequena alta daqueles que se encontram em extrema pobreza sob este critério, que passou de 6% para 6,06% no período. Por um lado, o cenário é de quase estagnação, com mudança inferior a um décimo de porcento da população, possivelmente por erro amostral. Por outro, essa é a ponta mais frágil da distribuição de renda.

É possível que cada vez menos brasileiros vivam com rendas baixas e, ao mesmo tempo, nenhuma melhora aconteça entre os mais absurdamente pobres. Na já citada definição oficial do governo, menos rígida, o quadro é de melhora. O Banco Mundial utiliza bastante as rendas abaixo de U$ 5,50 como critério de pobreza, e nessa definição também houve melhora. A má notícia se restringe às rendas inferiores a um dólar por dia.

Essa má notícia foi acompanhada de uma menor taxa de atendimento de três importantes programas sociais – Bolsa Família, Benefício de Prestação Continuada e Aposentadoria Rural, com todos apresentando queda do percentual de assistidos. Isso desencadeou, como visto anteriormente, a redução da renda dos programas sociais nos domicílios, o que impacta negativamente o índice de Gini – ou seja, indica aumento da desigualdade. Ainda que isso pudesse ter sido causado por um aumento da renda privada dos mais pobres, esse não foi de fato o caso, como será visto em seguida.

A piora na desigualdade – e por que ela aconteceu

Apesar da renda domiciliar per capita ter crescido, isso ocorreu numa dinâmica concentradora. Em média, a renda cresceu, mas com aumento da desigualdade. Brasileiros em diferentes posições da distribuição de renda ganharam em proporções diferentes, ainda que o cenário seja de melhora para grande parte.

O Índice de Gini da Renda Domiciliar Per Capita teve uma pequena alta, de 0,545 para 0,547. Esse aumento de 0,002, ainda que pequeno, representa cerca de 0,23% de aumento na desigualdade. É possível decompor esse aumento para entender de onde ele vem. É o que fizemos na tabela abaixo.

Para cada uma das quatro fontes de renda descritas acima, existem dois componentes que influenciam a desigualdade: as mudanças no número de pessoas que recebe o dinheiro e as mudanças de concentração entre quem o recebe. A desigualdade pode cair porque mais brasileiros estão trabalhando ou pode crescer porque uma porcentagem menor dos trabalhadores passou a receber uma parcela maior da massa salarial total.

Esse exemplo não é aleatório, pois ilustra o que aconteceu no Brasil: a primeira linha da tabela mostra que a maior concentração dos salários aumentou a desigualdade em 0,23% e o maior número de pessoas trabalhando a fez cair em 0,06%. Aplicando a mesma lógica, é possível notar que o menor número de brasileiros recebendo dinheiro de programas sociais contribuiu em 0,15% para o aumento na desigualdade.

Tabela 2: Efeito concentração e aumento de participação do crescimento da desigualdade

(Cálculos do Instituto Mercado Popular com dados da PNAD Contínua)

A crise acabou mais cedo para os 5% mais ricos, enquanto os 25% mais pobres estão estagnados

Podemos ainda olhar para as duas pontas da distribuição de renda para analisar o que aconteceu em 2017.

Considerando apenas os 5% mais ricos, a renda domiciliar per capita do topo da pirâmide cresceu 6,9% em termos reais. Os mais ricos ganharam mais dinheiro de todas as fontes, com exceção de programas sociais. A renda do trabalho, por exemplo, que corresponde à maior parte percentual, cresceu 4%.

Já a renda domiciliar per capita dos 25% mais pobres teve uma trajetória bem menos animadora, com um queda real de 0,06%. Vale destacar a queda real de 4,22% na renda do trabalho e de 0,36% na renda dos programas sociais. Por outro lado, a renda do INSS e de outras fontes tiveram forte crescimento – de 13,82% e 27,85%, respectivamente -, segurando os rendimentos da base da pirâmide.

2017 foi um bom ano para a maior parte dos brasileiros, mas nem tanto para os mais pobres

O ano de 2017 marcou o fim da crise de 2015-16, com maior geração de empregos, aumento nos salários e baixa inflação. A população brasileira, evidentemente sentiu os efeitos positivos do ano, com crescimento da renda domiciliar per capita e redução dos domicílios na Classe Baixa e pobreza.

No entanto, nem tudo foram flores, principalmente para os mais pobres. O aumento da renda domiciliar per capita brasileira foi acompanhada por uma redução dos rendimentos de programas sociais, como Bolsa Família e Benefício de Prestação Continuada, fazendo com que, apesar da redução da taxa de pobreza, a taxa de pobreza extrema tenha sofrido leve aumento, ainda que possa ser considerado apenas uma estagnação.

O mercado de trabalho também não foi favorável aos mais vulneráveis. Apesar de uma queda na taxa de desemprego, a renda do trabalho dos 25% mais pobres teve queda real – diferentemente dos 5% mais ricos – de modo a puxar a desigualdade para cima e manter o rendimento domiciliar per capita do último quartil da distribuição praticamente estagnado, com uma queda de 0,06%, segurado apenas pela previdência e outras fontes.

Compartilhar