Já virou quase uma tradição. Todos os anos, quase sempre em um período concomitante com o Fórum Econômico Mundial, em Davos, a ONG inglesa Oxfam divulga seu relatório dizendo que algumas dezenas de bilionários têm mais riqueza do que grande parte da população mundial. Apesar de ter bastante impacto em manchetes, é preciso ter muito cuidado ao interpretar esses dados. Eles não significam aquilo que parecem à primeira vista, por uma série de questões metodológicas e conceituais. Esse texto é um resumo dessas questões e se pretende a ajudar o leitor a fazer uma interpretação mais acertada deles – indo além das manchetes.

 

Desigualdade importa e a desigualdade global tem caído

Eu não sou daqueles que dizem que desigualdade de renda não importa – até por isso parte dos meus escritos acadêmicos se concentram sobre ela. Para a imensa maioria das pessoas, desigualdades injustas naturalmente incomodam. Por exemplo, há evidências de experimentos em psicologia social que mostram que crianças preferem ficar sem brinquedos a ver a outra criança na sala arbitrariamente ganhar uma quantidade desporporcionalmente maior de brinquedos1. Por isso, se as pessoas acharem que a elas está sendo negada a oportunidade de conseguir vencer na vida por motivos injustos (por exemplo, por causa de elites que compram o apoio de políticos com doações eleitorais ou que proíbem que negros tenham acesso a boas escolas de brancos), elas vão se sentir revoltadas. Isso é natural.

Mas é importante que a gente trate esse assunto com seriedade. De fato, como documentado por Piketty e seus co-autores, a desigualdade de renda e riqueza tem aumentado nos países ricos2. Quando consideramos o mundo como um todo, contudo, as melhores estatísticas que nos temos mostram que a desigualdade de renda no mundo vem caindo há pelo menos quarenta anos3,4.  É o que mostra o gráfico abaixo, resultado da pesquisa de Branko Milanović, possivelmente a maior autoridade sobre desigualdade global e autor de um bom livro de referência sobre o assunto5, e seus co-autores.

 

Isso tem ocorrido porque, durante o período de maior intensidade da globalização, os países mais pobres e populosos, como a China, a Índia e, em menor medida, aqueles da África e da América Latina, têm tido taxa de crescimento na renda média mais velozes do que aquelas dos países mais ricos. Contemporaneamente, para sua renda, importa muito mais o fato de você viver na Suíça ou na Índia do que ser um capitalista ou proletário: vivemos em um mundo pós-marxiano.

Cerca de cerca de três quartos da desigualdade global é explicada por desigualdade de “localização” (isto é, a renda média do país onde você vive), como visto no gráfico abaixo. Como essa desigualdade entre os países tem caído – e ela é a mais relevante para a desigualdade global de renda – há uma grande força de convergência na economia internacional impulsionada por esse período de globalização e o mundo tem se tornado mais igual.

 

 

Limitações dos dados utilizados pela Oxfam

É importante enfatizar isso: as manchetes fatalistas que usam dados da Oxfam sobre desigualdade de patrimônio têm muitas limitações e a qualidade deles não é tão confiável quanto os dados que temos sobre desigualdade de renda, que representam o estado da arte da evidência científica sobre a área. Há dois problemas fundamentais com os dados produzidos pela Credit Suisse que foram utilizados pela Oxfam.

O primeiro problema é de ordem técnica

Ao contrário de dados sobre a renda, a grande maioria dos países não tem dados sobre os estoques de riqueza, uma vez que o que se taxa normalmente é a renda e não a riqueza. Esse fato limita a confabilidade das estatísticas sobre a riqueza. Os autores do relatório que produzem os dados dizem isso de forma explícita: “nenhum país no mundo tem uma fonte compreensiva que agrega informações sobre riqueza pessoal; e muitos países renda baixa e média não tem quase nenhuma evidência direta sobre o assunto”6.

Ainda segundo o relatório da Credit Suisse, somente 23 países tem estimativas completas de riqueza do setor privado (conhecidas como “household balance sheets”). Outros 25 países tem dados parciais, detalhando a riqueza financeira mas não sobre a riqueza não financeira do setor privado. Isso é um problema por que, nos EUA, p.ex., a riqueza não financeira (imóveis, maquinários, etc.) é de cerca de 1/3 da riqueza total, o que significa que ignorar a parte não financeira é ignorar boa parte da realidade. Para os outros 150 países do estudo, os economistas da Credit Suisse fizeram extrapolações – que não são inúteis, mas tem suas limitações, já que não trazem informações completas6.O relatório original da Credit Suisse tem vários problemas além do mencionado acima. Entre eles:

  1. não inclui riqueza informal (as casas nas favelas e bairros pobres brasileiros, por exemplo, que muitas vezes valem dezenas de milhares de reais apesar de não serem formalizados com um título estatal) – riqueza esta que economista Hernando de Soto estima em cerca de 10 trilhões de dólares7; e
  2. não inclui riqueza implícita – como aquela prevista por sistemas de seguridade social dos países ricos, que se fossem administrados privadamente seriam parte de poupança dos cidadãos. O próprio relatório da Credit Suisse diz que o estudo sobre a riqueza global está “em sua infância”. Na melhor das hipóteses, essas estimativas são pouco confiáveis e devem ser tomadas com bastante cuidado.

O segundo problema é de ordem conceitual

Eles utilizam o conceito de riqueza líquida (ou seja: patrimônio menos dívidas). Segundo essa metodologia alguém que se formou em Harvard, vive num apartamento de cobertura em Nova Iorque e ganha 100 mil dólares por ano mas tem 250 mil dólares em dívidas estudantis é mais pobre do que um camponês indiano que tem uma bicicleta, vive com um dólar por dia e não tem dívida. Não importa se o cara de Harvard gasta centenas de dólares tomando McCallahan’s 18 anos todas as vezes que sai para a balada. Para Oxfam, ele é mais pobre que o camponês indiano.

Isso faz sentido pra definir quem é pobre e quem é rico? Certamente não. De acordo com qualquer critério razoável, o advogado novaiorquino tem padrões de consumo e uma qualidade de vida em ordens de magnitude mais altas do que a do camponês indiano. Mas, como suas dívidas superam seus bens, ele é considerado “mais pobre” que o camponês indiano pelo conceito adotado pela Oxfam.

Usando essa metodologia, se você tirar um real do bolso e der para seu sobrinho de dez anos, ele vai ter uma riqueza maior do que cerca de 2 bilhões de pessoas somadas. Sim, seu sobrinho instantaneamente passa a ser um magnata com mais riqueza que bilhões de pessoas juntas. Como isso é possível? Porque essas 2 bilhões de pessoas, tendo dívida maior que seu patrimônio, têm riqueza negativa. Usando essa metodologia, Eike Batista, cujas dívidas superam seus bens em cerca de 1 bilhão de dólares, é um dos homens mais pobres do Brasil.

Isso acaba levando a uma distorção importante. Em geral, países mais pobres têm mercados de crédito menos desenvolvidos, de tal modo que os níveis de crédito (ou seja, dívida) em países ricos é maior do que em países com padrões de vida mais baixo. Essa relação é demonstrada no gráfico abaixo, em que cada país é uma bolinha.

Segundo esse critério, quase 20% daqueles que se encontram entre os 10% mais pobres em termos de patrimônio estão na América do Norte e na Europa. Na verdade, a maioria das pessoas com patrimônio negativos (o que as colocaria entre as mais pobres do mundo, segundo o critério) estão em países desenvolvidos. Mas cidadãos de países ricos terem maior acesso ao crédito e, portanto, dívidas maiores, obviamente não significa que eles sejam mais pobres do que os cidadãos de países. Eles têm acesso a crédito exatamente porque eles são mais ricosÉ por isso que eles conseguem pegar empréstimos, tomar risco, investir, ir para universidades caras, viajar, comprar casas financiadas. Por isso, é preciso tomar muito cuidado ao interpretar esses dados, já que eles não indicam as diferenças de padrões de vida que entendemos intuitivamente como pobreza e riqueza.

 

Para o Brasil, as limitações dos dados são ainda maiores

Segundo o relatório que serve de base para as publicações da Oxfam Brasil, não há informações completas sobre a distribuição de riqueza no Brasil para nem sequer um ano. Não há informações sobre patrimônio não-financeiro – como apartamentos, casas, fazendas, carros, caminhões, propriedade de micro e pequenas empresas, etc. Ou seja, para coisas que são boa parte do patrimônio dos brasileiros, em especial os que não são super-ricos, simplesmente não há estimativas ou pesquisas oficiais disponíveis.

Isso é bem diferente do que ocorre com o estudo da da distribuição de renda brasileira, que é razoavelmente bem estimada pela combinação de pesquisas como a Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios e as declarações do Imposto de Renda. Essa estimação bem feita, com base em microdados de pesquisas de domicílio e tabelamentos fiscais, não existe para o patrimônio e, no estágio atual das informações disponíveis, não pode ser feita para a riqueza.

Por isso, os pesquisadores do Credit Suisse fazem uma extrapolação com base em dados de outros países, dados financeiros e a distribuição de renda brasileira. Esse é um exercício interessante, mas tem muitas limitações e deve ser tomado como uma exploração preliminar – nada além disso. Abaixo, um dos anexos do relatório original, que confirma que não há dados brasileiros completos (de pesquisa ou household balance sheets) pra nem sequer um ano.

Desigualdade importa – e é importante entender limitações e compreender tendências

Nem todas as desigualdades são iguais. Às vezes, quando o ponto de partida é muito ruim, a desigualdade é simplesmente fruto da melhoria de vida de algumas pessoas. Angus Deaton, que ganhou o Nobel de Economia há alguns anos, traz um exemplo interessante em seu livro mais recente8: imagine que, dentre 100 judeus em um campo de concentração, dez conseguem fugir. Isso causou uma desigualdade, já que agora alguns estão em liberdade e outros não. Mas isso não é uma situação inerentemente pior à situação de plena igualdade em que todos estavam no campo de concentração, é? Talvez essa desigualdade inicial dê esperança para os que lá ficaram e faça com que eles fujam. Por outro lado, talvez os guardas punam os que ficaram para desincentivar fugas futuras. De todo modo, não há nada óbvio em relação à desigualdade. Ela pode ser boa ou ruim: sempre depende.

Desigualdade é como colesterol: há uma boa e outra ruim. A boa é aquela que deriva dos talentos, esforços e inventividade das pessoas e gera bons incentivos. Quando alguém cria valor para os outros ela deve ser recompensada por isso – porque isso gera dinamismo econômico, inovação e menos pobreza (pense no arquétipo do Steve Jobs). Se ela não for recompensada, ela não vai ter incentivo pra continuar inovando. A ruim é aquela de uma sociedade estamental – de comando e controle – onde as pessoas não enriquecem por causa de sua inventividade ou pelo valor que geram para à sociedade, mas pelos privilégios que têm junto aos poderosos (pense no arquétipo de Eike Batista). Temos que corrigir as desigualdades injustas que existem no mundo – e elas existem de montão. Mas para isso precisamos de análise séria. E não retóricas travestidas de números.

Existem diversos problemas recentes de exarcebação das desigualdades nos países desenvolvidos – e é por isso que estudos como os da Oxfam têm tanta repercussão. Mas, numa perspectiva global, segundo os melhores dados que temos, não há dúvidas: o mundo está se tornando mais rico, com menores taxas de pobreza; e mais igual, com uma desigualdade de renda cada vez menor.

Sobre a desigualdade de riqueza, os poucos dados disponíveis parecem indicar que a tendência de redução da desigualdade de renda ainda não chegou na desigualdade de patrimônio, embora seja razoável esperar que isso aconteça no futuro. Isso, por dois motivos. Os pobres não têm renda suficiente para poupar uma quantidade substancial de seus ingressos mensais. Além disso, o patrimônio é o acúmulo de fluxos de renda que são poupados longo do tempo. Portanto, à medida que a pobreza e a desigualdade de renda caem, como tem ocorrido, é provável que isso se reflita em menor desigualdade de patrimônio no futuro. Mas, como a qualidade desses dados ainda é muito baixa, é preciso tomá-los como evidência preliminar, com muito erro de mensuração, sobre o qual não é possível fazer comparações com o patrimônio de pessoas específicas.

Afirmar coisas como “x pessoas tem mais riqueza que 50% dos brasileiros” como se isso fosse uma verdade não é pesquisa econômica, é estratégia política. Para quem se interessa pelas dinâmicas de desigualdade e pede sempre dados de melhor qualidade das autoridades públicas para que saibamos o que realmente acontece, esse tipo de caricaturas de manchetes atrapalha muito. Ela mais confunde do que elucida. E é importante que não sejamos confundidos por ela.

 

Notas de rodapé

1. LoBue, Vanessa, et al. “When getting something good is bad: Even three‐year‐olds react to inequality.” Social Development 20.1 (2011): 154-170.
2. Piketty, Thomas and Gabriel Zucman (2015). “Wealth and Inheritance in the Long Run”. In: Handbook of Income Distribution, v. 2A. Ed. by Jan Fagerberg, David C. Mowery, and Richard R. Nelson. Amsterdam: North Holland. Chap. 15, pp. 1303–1368. doi: 10 . 1016 / B978 – 0 – 444 – 59429-7.00016-9.
3. Lakner, Christoph, and Branko Milanovic. “Global Income Distribution: From the Fall of the Berlin Wall to the Great Recession.” The World Bank Economic Review (2015): pp. 1-
30.
4. Milanovic, B. (2012a) “Global inequality recalculated and updated: the effect of new PPP estimates on global inequality and 2005 estimates.” The Journal of Economic Inequality 10.1 (2012): 1-18.
5. Milanovic, B. (2016) Global Inequality: A New Approach For The Age of Globalization. Harvard University Press.
7. De Soto, H. (2003) “The Mistery of Capital”. NY: Basic.
8. Deaton, A. (2015) “The Great Escape”. Princeton: PUP.
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