A maioria dos adeptos de ideologias tendem a pensar que uma visão ideal sobre o sistema social, econômico e político é útil ou necessária. A ideia é que precisamos de boas opiniões sobre futuros perfeitos se quisermos um progresso incremental constante em direção a uma sociedade boa e justa.
Se você não sabe para onde se dirigir no longo prazo – se você não sabe como é a utopia – como pode saber quais as próximas etapas a seguir?
Pensar numa utopia como guia é intuitivo e atraente. Mas acontece que está errado. Esse tipo de ideal político pode nos atrapalhar no caminho real para um mundo melhor.
Uma grande mudança na teoria política está em andamento. O espaço está acabando para os sistemas ideais. É claro que seus encantos demoram a morrer. Novos paradigmas levam uma geração ou mais para escorrer através dos meios intelectuais. Ainda não nos livramos das teorias ideais, especialmente nas políticas públicas.
É dramático dizer que a morte da teoria ideal muda tudo, mas muda muito. Há impacto direto, por exemplo, no que significa ser um think tank de princípios ideológicos.
Se você concordar com essa ideia, reconhecerá um grande erro intelectual nos discursos teóricos que muitas instituições constroem para promover ideologias. Isso não tem nada a ver com o liberalismo ou socialismo, por si só. Meu argumento é geral.
Não importa qual padrão moral você usa para avaliar os sistemas sociais. Seja a liberdade como não coerção ou uma radical igualdade material. Não importa.
Nossas evidências sobre como sistemas sociais funcionam são limitadas pelas experiências históricas. Eis um grande problema para qualquer pessoa comprometida com uma revisão radical da sociedade.
Quando nosso sistema predileto se distancia daqueles que existiram, também se afasta da base de evidências sobre como os sistemas sociais funcionam. Quanto mais radical for o mundo ideal, mais provável será o engano. Maior será a chance do sistema perfeito não ser mais livre, ou mais igual ou mais justo como se previa.
Não há nenhuma maneira de justificar racionalmente a crença de que o anarcocapitalismo será melhor em termos de “liberdade libertária” do que o Canadá de 2017; ou de que a substituição do capitalismo por uma “democracia econômica” levaria a maior igualdade do que a do Canadá de 2017.
Você pode achar que sabe como o anarcocapitalismo ou a “democracia econômica” funcionam, mas você não sabe. Você está apenas adivinhando – extrapolando muito além de sua evidência. Você não pode estipular que funciona como você quer.
Este é um problema geral. As previsões de especialistas sobre os efeitos prováveis de mudar uma única política pública tendem a ser bastante ruins. Bem, a economia política de um estado-nação é muito mais complicada. Nossas previsões sobre o novo sistema dificilmente serão melhores do que o aleatório.
Mesmo que a sua ideia seja a número um para seu padrão normativo favorito (liberdade, igualdade, etc), você não tem como argumentar racionalmente que seu sistema é o melhor. Não é produtivo defender um ideal radical quando você não tem um bom motivo para acreditar que ele é melhor do que sistemas realmente existentes. Seja o critério liberdade, igualdade, solidariedade nacionalista ou o que quer que você se preocupe.
É uma lição difícil para ideólogos. Eu ainda não a digeri totalmente, mas uma série de coisas se tornaram muito mais claras quando rejeitei o pecado da teoria ideal.
A morte da teoria ideal leva a uma abordagem não ideológica, empírica e comparativa da análise política. Isso não significa renunciar, digamos, a um valor.
Hoje, acho que sou mais liberal – mais comprometido com o valor da liberdade – do que jamais fui. Isso não significa que tenho uma imagem da sociedade idealmente livre ou uma utopia libertária. Nós não estamos em posição de saber como é isso.
O melhor a fazer é classificar os sistemas atuais em termos dos valores que interessam, e depois ver o que podemos aprender. O Índice de Liberdade Humana do Instituto Cato é uma tentativa de medição útil. O que vemos? Veja:
Em diferentes versões, os países destacados adotam uma democracia liberal, capitalista, onde o Estado fornece serviços públicos e redistribui renda. Há evidências de que este regime geral é bom para a liberdade. Ele provavelmente é o melhor que já fizemos em termos de liberdade.
Dinamarca (# 5), Finlândia (# 9) e Holanda (# 10) tem alguns dos maiores governos do mundo, em termos de gastos públicos como porcentagem do PIB. O peso da “liberdade econômica”, que incorpora uma concepção distintamente anti-Estado, prejudica a classificação desses países.
Quem não conta com uma teoria ideal também classifica os sistemas que existem de acordo com alguns valores. As dúvidas sobre o que funciona melhor é o que nos diferencia dos ideólogos.
Suponhamos uma pesquisa sobre qual país goza de mais liberdade, de acordo com as métricas do Instituto Cato. Os Estados Unidos ou a Suécia? Os Estados Unidos ou a Alemanha? Os Estados Unidos ou o Canadá? Os Estados Unidos ou a Lituânia? Tenho certeza de que quase todos os libertários americanos errariam as respostas.
O típico libertário carrega uma imagem teórica ideal da “sociedade livre” em sua cabeça, e (por algum motivo!) pouca tributação e redistribuição seriam aspectos essenciais da liberdade. A Dinamarca, assim, não parece muito livre.
Fugindo dos esquemas, a liberdade depende de muito mais do que impostos ou redistribuição. O governo mais caro do mundo é de um dos países mais livres do mundo, ocupante do primeiro lugar no critério “liberdade pessoal”.
Esses são os dados disponíveis. Significam que os Estados Unidos devem gastar como a Dinamarca? Não. Mas se um índice de liberdade, construído a partir de pressupostos liberais, mostra que a liberdade prospera mesmo onde há muitas políticas de bem-estar, fica mais fraca a oposição entre liberdade e redistribuição.
Diante disso, cabe atualizar nossas crenças sobre a realidade. Liberdade e redistribuição podem não ser excludentes, e talvez sejam até complementares. Esse tipo de consideração conduz meu apreço pela liberdade no lugar dos elogios ideais e teóricos a modelos de direitos naturais.
Embora o liberalismo seja de interesse pessoal para mim, quero enfatizar novamente que o meu maior ponto não tem nada a ver com essas ideias. A mesma lição aplica-se aos etno-nacionalistas da alt-right, sonhando com um país etnicamente homogêneo e solidário. A mesma lição aplica-se a progressistas e socialistas sob a influência de imagens utópicas de justiça social igualitária.
Ninguém sabe como seria uma sociedade idealmente progressista. Se o Índice de Progresso Social for um bom critério, encontraremos no topo os mesmos países que lá estão no Índice de Liberdade.
A coincidência é impressionante. E isso destaca uma patologia da teoria ideal: a polarização irracional através do narcisismo de pequenas diferenças.
A teoria ideal produz conflitos escondendo consensos. Sob praticamente qualquer medida, a Dinamarca é uma utopia real. Mas também a Suíça. E assim é a Nova Zelândia.
A diferença efetiva entre os modelos nórdicos (Suécia, Dinamarca, Noruega) e o das antigas colônias inglesas (Austrália, Estados Unidos, Canadá) é insignificante em termos de “liberdade humana” e “progresso social”.
O compromisso apaixonado com um ideal purista pode obscurecer o fato de que o Estado de bem-estar, capitalista e liberal-democrático tem resultados impressionantes. Vale a pena defendê-lo, e conviver com valores políticos rivais que o defendam. Nesse contexto, a diferença convive mais harmoniosamente do que utopias nos levam a imaginar.
Eu suspeito que isso explique por que a intolerância cada vez maior com a democracia liberal, entre utópicos de todo o mundo. E por que não há amor das massas pelo “neoliberalismo”, apesar dele satisfazer muito bem alguns objetivos mensuráveis.
Quando confrontado com o contraditório, o ideólogo interpreta a perda de fé como uma falha objetiva. Ele a diagnostica como falta de progresso no caminho do ideal, mesmo sem argumentos racionais para acreditar que sua agenda deixa alguém melhor.
É intelectualmente corrupto definir a liberdade ou a igualdade ou seja-lá-qual-valor através de um sistema ideal. Ninguém sabe se uma visão entregará o prometido. O compromisso com a sociedade perfeita torna mais provável esses “julgamentos de infidelidade”.
Quando você define uma utopia em termos de seu valor preferido, você se compromete com uma ideia sobre como o mundo funciona sem a evidência necessária. É um compromisso de identidade e associação de grupo, não um julgamento da razão.
Você passa a julgar evidências de acordo com o necessário para sua ideologia. Dá grande credibilidade ao que é confortável, enquanto ignora evidências de que o mundo não funciona assim como o esperado. O resultado é que seu compromisso teórico ideal acaba por dirigir o que você sabe sobre o mundo real.
Dado que sua teoria ideal provavelmente está errada, usá-la como um filtro para avaliar evidências leva a uma imagem desastrosamente distorcida do modo como o mundo realmente funciona. Você vai fazer previsões sistemáticas terríveis sobre as conseqüências prováveis das mudança de política.
Você pode ficar muito ruim na identificação de reformas propensas a promover liberdade ou igualdade ou seja-lá-qual-valor. Seu modelo ideológico e distorcido do mundo lhe deixará incapaz de avaliar a evidência de forma objetiva.
A morte da teoria ideal me fez adotar uma perspectiva não-especulativa e não-utópica sobre instituições que promovem a liberdade. Se você não sabe de antemão como é o mais livre dos sistemas sociais, evidências sobre políticas específicas (seja uma política social ou a legalização da heroína) deixar de ser ameaças à sua identidade como amante da liberdade.
A incerteza sobre qual o melhor esquema social nos abre para as evidências de uma maneira genuinamente curiosa e não tendenciosa. E nos liberta da ansiedade quando especialistas dizem o que não queremos ouvir. Isso, por sua vez, nos livra do desejo de fazer campanhas quijotescas contra a autoridade de especialistas legítimos. É possível agir como uma pessoa racional! Você deve aceitar que precisa de evidências extraordinárias quando não concorda com um consenso de especialistas em questões empíricas.
O reinado da teoria ideal na filosofia política transformou muitas pessoas incrivelmente inteligentes, de princípios e moralmente motivadas em ideólogos pouco confiáveis. Isso deixou o campo da análise de políticas racionais para tecnocratas pragmáticos, que também possuem problemas sérios. Longa história curta: acabamos com uma espécie de divisão nas políticas públicas, entre gente moralmente apaixonados, mas presa em bolha, e especialistas técnicos capazes de análises objetivas, mas desprovidos de inspiração.
O espaço de possibilidade é infinito. É preciso energia e entusiasmo para explorá-lo. A geração de hipóteses imaginativas é o grande intangível, e sem ela o progresso é impossível ou devagar. Os técnicos, os quants, os ratos de laboratório tendem a ser horríveis em inventar hipóteses. A paixão moral ideológica é um cavalo selvagem perfeito para motivar a exploração do sonho próximo e viável. Graças à tirania do ideal, essa fonte de energia intelectual é desperdiçada.
Ninguém vai lutar pelo que funciona se as pessoas que lutam são cegas para o que funciona. Nem se faltar imaginação às pessoas capazes de olhar para o que funciona.
Eu acho que isso é o que diferencia o Niskanen*. Temos um idealismo mal orientado, uma paixão moral que já atraiu a maioria de nós para o radicalismo em algum momento. Tentamos canalizar essa paixão para descobrir o que provavelmente funciona para tornar nossa sociedade mais livre, próspera e justa.
Nota do Editor: O texto é de Will Wilkinson, vice- presidente de políticas públicas do Niskanen Center, que autorizou sua publicação neste Mercado Popular. Apesar de escrito num contexto distinto do brasileiro, boa parte do seu conteúdo se aplica a este Mercado, inclusive presente em seu manifesto.