O nome do Plano Real surgiu por iniciativa do publicitário Nizan Guanaes, que sugeriu o ‘R’ na sigla URV. A ideia era simples: o governo gastava o que não tinha e precisava de uma inflação cavalar para fechar suas contas; o Plano fazia a transição entre esse mundo ilusório. Até então, o governo não sabia sequer quanto gastava, o que era agravado por diversas políticas que geram despesas e não constavam no orçamento.
O Real começou justamente fechando diversas torneiras de despesa não contabilizada. Hoje, o governo tenta lacrar uma das últimas que restaram no orçamento: o BNDES.
Como já foi registrado noutros textos deste Mercado, o BNDES sofreu grande expansão nos últimos anos, numa política especialmente desastrada. A atual equipe econômica vem fazendo esforços para que o Banco seja mais eficaz e, sobretudo, mais transparente.
O principal projeto neste sentido é a MP 777 que estabelece a TLP (Taxa de Longo Prazo). Entre seus principais opositores, está o senador José Serra, em aliança inusitada com lideranças petistas, como Lindbergh Farias.
Não é questão de incoerência. Serra, ainda na década de 90, não se entusiasmava com as ideias do Real. Na campanha de 2002 o ex-presidente Itamar Franco declarou:
Assim como o Plano Real, a TLP é um importante instrumento para que o Brasil tenha taxas de juros e inflação mais baixas. Ela coloca no orçamento aquilo que deveria estar lá, mas hoje não está.
Em artigo semana passada para o Estadão, José Serra declarou:
O BNDES é financiado pelo Tesouro Nacional (contribuinte) e FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador), um fundo que arrecada parte do salário de todos os trabalhadores para custear programas como Seguro-Desemprego e o Abono Salarial. Por lei, 40% do FAT é destinado ao BNDES.
O BNDES funciona da seguinte forma, em linhas gerais: ele recebe dinheiro do FAT e do BNDES; realiza operações com o dinheiro; e devolve o valor recebido e multiplicado por uma taxa chamada TJLP (Taxa de Juros de Longo Prazo).
A TJLP é definida pelo Conselho Monetário Nacional, formado pelas três principais autoridades federais na área econômica: ministro do Planejamento, ministro da Fazenda e presidente do Banco Central. Historicamente, essa taxa tem sido inferior à que o próprio governo paga em seus empréstimos (SELIC).
A diferença entre a Taxa Selic (em vermelho, taxa que o governo paga na sua dívida) e TJLP (em preto, taxa que o BNDES) se transforma num custo chamado de “subsídio implícito”. Recebe esse nome por estar escondido do orçamento.
Um texto de Maurício Schwartsman explicou por que se trata de uma despesa, neste Mercado:
“Como o próprio Tesouro também se financia com dívida a taxas mais elevadas que a TJLP, existe também o subsídio implícito, que se deve ao valor do dinheiro no tempo. Essa diferença acaba aumentando a dívida pública da mesma maneira que gastos “normais”, mas não é declarada.
Imagine um empréstimo muito simples, que consiste em tomar dinheiro agora e devolver amanhã um montante maior. Você pega 10 reais e empresta os mesmos 10 agora. Agora imagine que amanhã você precisa devolver 15 a quem lhe emprestou, mas receberá apenas 12 pelo empréstimo. Ou seja, você incorreu em um gasto.”
De acordo com o Ministério da Fazenda, com a nova taxa, o déficit no Fundo de Amparo ao Trabalhador cairá de 18 para 3 bilhões. No caso do Tesouro Nacional, um estudo de Marco Bonomo, Luis Bento e Paulo Ribeiro estimou que a nova taxa pode diminuir a dívida pública em 100 bilhões de reais, cerca de 4 anos do Bolsa Família ou 2/3 do rombo nas contas em 2017.
Boa parte das despesas não-contabilizadas antes do Plano Real vinham justamente de operações de crédito fora do orçamento, como a que a TLP pretende alterar. Se você se interessa sobre o assunto, Carlos Góes já escreveu neste Mercado sobre alguns aspectos do Plano Real.
A MP 777 visa substituir gradualmente, ao longo de 5 anos, a TJLP por uma nova taxa, a TLP. Essa taxa reformada será igual a um dos títulos de dívida pública mais comuns, a NTN-B. Logo, o subsídio implícito deixa de assistir, pois o governo estará recebendo a mesma taxa que paga na sua dívida.
A medida também se preocupa com questões de igualdade, como ilustra o gráfico acima. Ele mostra como os empresários com acesso a crédito no governo acabam recebendo um belo presente (primeira e terceira linhas). Já o “resto” precisa pagar juros maiores para bancar a ‘meia-entrada’ dos privilegiados (segunda e quarta linha).
É importante notar que, após a reforma, bancos públicos continuarão praticando juros mais baixos do que os privados, embora a diferença fique menor.
Outro ponto que o Senador não parece ter compreendido é que a nova taxa não impede o governo de dar subsídios a empresários. É o que ele parece sugerir quando trata da “derrubada dos planos de investimento”. A TLP só torna os subsídios mais transparentes e obriga que eles apareçam no orçamento, como ocorreu nas medidas anteriores ao Real.
Com esta nova regra, caso o BNDES queira conceder um empréstimo a uma taxa menor que TLP (ou seja, menor que as taxas da dívida pública), ele deverá buscar aprovação no Congresso Nacional. É o que acontece com todo o resto do orçamento.
Para entender a magnitude da falta de transparência, ano passado, R$ 28 bilhões foram gastos em subsídios explícitos, enquanto R$ 78 bilhões foram subsídios implícitos. Para efeito de comparação o governo brasileiro gastou R$ 27 bilhões no Programa Bolsa Família ano passado, cerca de um terço dos subsídios implícitos, o que é natural dado que estes não disputam espaço no orçamento.
É razoável pensar que, se a nova regra já estivesse em vigor, investimentos de baixo retorno não seriam realizados nos últimos anos. Estádios e obras no exterior são exemplos fáceis. É essencial notar que, ao contrário do que Serra sugere, o BNDES poderia até receber cada vez mais recursos do Estado para emprestar. A diferença é que, politicamente, não seria tão fácil quanto hoje.
A TLP, na prática, retira essa decisão do estamento burocrático (e de empresários corruptos que o financiam e influenciam). As despesas públicas voltam à discussão da sociedade, através de representantes eleitos. Onde, afinal, a decisão sempre deveria ter permanecido.