Impostos são um raro assunto econômico que desperta paixões. Trata-se de um gasto doloroso, um dos maiores de qualquer família ou empresa. O programa Greg News, da HBO, deu sua contribuição ao debate com uma esquete de 20 minutos sobre o tema.
O resultado é um resumo sobre alguns problemas graves, acompanhado de um discurso raso e pouco cuidadoso com fatos. Em mais de uma ocasião, adota o caminho dos “fatos alternativos”, típico das “fake news”.
Muitas ineficiências do sistema brasileiro são corretamente apresentadas, é importante notar. A burocracia tributária é uma das mais complexas no mundo, consumindo 2038 horas por ano apenas para que as empresas saibam como pagar seus impostos. O programa também aponta que a cobrança está concentrada na parcela mais pobre da população, por meio do elevado imposto sobre consumo vigente no Brasil. Tudo isso é verdadeiro e são pontos também destacados pelos principais especialistas no tema.
O texto apresentado por Gregório Duvivier cita esses e outros dados, mas nem sempre é cuidadoso com eles. Alguns números são comparados incorretamente com outros, que dizem coisas diferentes. Noutros casos, Gregorio faz afirmações fortes utilizando exemplos pontualmente escolhidos. Parte importante da esquete é dedicada ao imposto sobre dividendos, mas a omissão de contexto induz o espectador ao erro.
Trabalhamos 152 dias por ano – ou de 1 de janeiro até 2 de junho – somente para pagar impostos. O texto do Greg News cita esse número, mas em seguida defende que a carga tributária, em última análise, não seria assim tão alta.
Para ilustrar que esses 152 dias não seriam tanta coisa na comparação internacional, Gregorio apresenta a tabela abaixo, com a porcentagem da renda nacional que é paga em impostos. Ele mesmo informa se tratar de um clube de países ricos, a OCDE.
O que Gregorio não informa são alguns detalhes sobre a escolha desses países. Por exemplo: boa parte dos integrantes da OCDE, e especificamente todos os que estão à frente do Brasil na tabela, são países europeus e ricos com uma população muito mais velha que a do resto do mundo.
O sistema de previdência, em geral, é o maior gasto dos Estados. A saúde pública costuma ficar próxima no ranqueamento. Ambos são fortemente afetados pela idade da população. Essa diferença demográfica explica, ao menos em parte, por que países ricos europeus tem gasto público maior que o resto do mundo.
Outra ressalva importante, no caso, é que se trata da região mais rica do mundo há muitos séculos. Estes países já se encontravam em situação privilegiada quando aceleraram o crescimento do gasto, uma decisão que envolveu custos incomparáveis com o brasileiro.
Gregorio Duvivier tem um programa de humor, e é natural que ele não faça explicações econômicas detalhadas por lá – ainda mais porque essas explicações podem gerar polêmicas até em discussões monótonas entre economistas.
Ainda assim, uma questão é crucial: se hoje existem dados abertos sobre países de todo o mundo, por que o Greg News escolheu apenas esses? E se comparassem o Brasil com países mais parecidos? Em qualquer um dos casos, o texto do programa seria flagrantemente desmentido pelos dados apresentados.
Se o Greg News mostrasse uma tabela com a carga tributária no continente americano, seria assim, com o Brasil na terceira colocação.
Se a mesma comparação fosse feita com todos os países de renda média, o resultado se mantém, com o Brasil muito próximo do topo.
Diversas organizações coletam e organizam este tipo de informação, disponibilizando gratuitamente as tabelas na internet. Os gráficos acima foram feitos com dados compilados pela Heritage Foundation.
O grupo usado por Gregório Duvivier na sua comparação parece escolhido a dedo para reforçar seu argumento. Infelizmente, ao contrário do que ele afirma, a carga tributária brasileira está entre as mais altas na comparação internacional.
Gregorio levanta também uma questão fundamental sobre a equidade do sistema tributário, que pesaria mais no bolso de quem tem menos. Isso de fato ocorre e é um problema grave do sistema brasileiro.
Um dos dados que Gregorio cita com mais ênfase aponta que a base na pirâmide de renda (famílias que ganham até 2 salários mínimos) gastam 48,8% da sua renda em impostos, enquanto o topo (renda maior do que 135 mil) pagaria somente 9%.
Esse é um trecho especialmente grave. Os 9% dizem respeito à parcela paga em imposto de renda, um tipo de tributo que simplesmente não existe para a população mais pobre. Já os 48,8% representam o percentual de renda total pago em impostos. Gregorio cita em sequência números que dizem coisas bastante diferentes, sem explicar adequadamente a diferença.
Boa parte do programa é dedicado a uma espécie de denúncia quanto à ausência de impostos sobre dividendos no Brasil. Em parte, a fala de Gregorio ecoa a de especialistas como Felipe Salto, diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente. A diferença está no tom. No Greg News, a ausência do imposto justifica que o apresentador chame o Brasil de “paraíso fiscal” para quem recebe dividendos.
Gregorio diz que dividendos são os “salários dos super-ricos”. Conceitualmente, trata-se da parcela dos lucros que é redistribuída ao acionista de uma sociedade anônima, como as empresas da Bolsa de Valores. A questão-chave, neste caso, é que já existem diversos outros impostos que incidem sobre lucros.
É perfeitamente possível que se questione a ausência de impostos sobre dividendos, mas caso este fosse criado, se estaria apenas estabelecendo a bitributação para certo tipo de lucro, que já paga imposto antes. Para dizer que isso transforma o Brasil no “paraíso fiscal”, não basta apontar que só a Estônia adota a mesma postura. É necessário olhar se o paraíso fiscal existem também o lucro das empresas, origem do dinheiro.
Anualmente a consultoria PriceWaterhouseCooper (PWC) lança o relatório “Paying Taxes” que em conjunto com o Banco Mundial analisa o sistema tributário de 190 economias. No relatório, é calculada a Carga Tributária Total, que é o percentual do lucro da empresa destinado para o pagamento de impostos em diversos países.
Como se vê, os impostos pesam também sobre os lucros das empresas – e, portanto, sobre os dividendos -, de modo que não faz sentido usar a ausência desse tipo de imposto para chamar o Brasil de “paraíso fiscal”. Mesmo incluindo os dividendos no cálculo, a situação não se inverte.
O fato de nossa carga tributária ser superior à comparação internacional não significa, no entanto, que devemos esquecer para sempre a ideia de taxar dividendos. A tributação de dividendos, do ponto de vista econômico, pode ser mais inteligente do que a tributação do lucro na pessoa jurídica. Cobrar o imposto apenas quanto ele vai para o acionista pode incentivar as empresas a reinvestirem uma maior parcela do lucro, o que provavelmente é mais benéfico para a sociedade do que aumentar o consumo presente do acionista.
Nada disso torna o sistema tributário imune de críticas. Gregorio pode ter comparado erroneamente dados sobre a progressividade da carga tributária, mas a imagem real não é muito melhor: enquanto a base da pirâmide paga 48,8% de sua renda em impostos, o topo da pirâmide (famílias com renda superior a 30 salários mínimos) gasta somente 26,3% da sua renda em impostos.
É sadio denunciar essa desigualdade, que de fato existe, mas de nada adianta tratá-la com narrativas simplistas e pesadamente ideológicas. O Brasil não passa perto de ser um paraíso fiscal para empresários. Os impostos são socialmente injustos e pesam mais para o pobre, mas são altos mesmo na média. Explicar o sistema tributário para a população desta forma é desinformar a população.
Gregorio Duvivier e seus ‘fatos alternativos’ em nada ajudam o debate. Na melhor hipótese, apenas confirmam que todo problema complexo tem uma resposta simples, elegante e completamente errada.