A declaração de ilegalidade da diferenciação de preços para o ingresso de homens e mulheres em casas noturnas acendeu o debate sobre dignidade da pessoa humana, disponibilidade de direitos, questões de gênero e paternalismo. A proposta é de uma conversa franca sobre a mencionada distinção e, por isso, teremos o seguinte ponto de partida: os ambientes comerciais adotam essa postura não porque as mulheres ganham menos no mercado de trabalho, mas sim porque querem proporcionar um ambiente com mais mulheres para agradar ao público masculino.
A partir daí a discussão se centrará na resposta às seguintes questões: há violação à dignidade das mulheres decorrente da diferenciação dos valores de ingresso? Se sim, seria um direito indisponível? Não são questionamentos triviais. Em pesquisas informais realizadas por diversos sites debatendo o assunto, a maioria das mulheres e dos homens parecem não concordar com a prática, muito embora também haja mulheres cujo discurso é de defesa e benevolência. Aparecem como as três principais razões o fato de 1) o gênero feminino ainda receber menos que o masculino no mercado de trabalho; 2) as mulheres possuírem despesas superiores aos dos homens para estarem idealmente presentes nas baladas; 3) em situações de open bar as mulheres provavelmente ainda consumirem menos.
Mas ora, é preciso sempre lembrar que estamos falando de um grupo que, apesar de supostamente homogêneo, é muito diversificado e difícil de ser rotulado. Afinal, estamos tratando da dignidade das mulheres de forma ampla.
Discordar das práticas dos estabelecimentos noturnos não significa, por si só, que o Estado deveria ter uma atitude paternalista em relação a um grupo supostamente hipossuficiente. Não podemos partir da premissa que ao usufruir dos descontos das casas noturnas as consumidoras são menos esclarecidas ou mesmo menos preocupadas com o bem-estar feminino.
Há outras interpretações cabíveis, como a possibilidade de perfeita compreensão da mensagem transmitida pelos estabelecimentos, cujo fim é o agrado do público masculino, e, ainda assim, haver indiferença por parte das consumidoras. As mulheres são livres para escolher e possuem discernimento individual o suficiente para dispor sobre sua própria dignidade. Ser contrário a essas ideias é equivalente a presumir um patamar intelectual inferior das mulheres frente ao Estado, o qual pode escolher melhor que nós mesmas as baladas a se frequentar.
O objeto em análise trata de mulheres adultas que livremente dispõem de seus corpos e seus recursos financeiros para, como bem entenderem, trafegarem entre as casas noturnas de seu interesse. De maneira análoga, também é perfeitamente possível para as mulheres com sentimento de dignidade violada deixarem de frequentar esses ambientes. Aliás, dessa escolha negativa não resultará qualquer ônus para elas. Afinal, cidades como Brasília – local onde foi ajuizada a ação que reacendeu o debate sobre o tema e motivou a orientação técnica – possuem um rol extremamente amplo de opções culturais, das gratuitas às pagas, sem qualquer distinção sobre o valor a ser pago de acordo com o gênero. Há, inclusive, casos de empreendedores que ao repudiarem a cobrança de preços diferenciados, buscam transmitir a ideia de igualdade de gênero – e justamente por isso atraem maior público.
A aceitação de uma mulher por pagar menos pelo valor do ingresso não pode atingir a dignidade de quem não compactua com a prática. Da mesma forma, uma mulher que decida fazer ensaios fotográficos para agradar ao público masculino também não pode ser parâmetro para a violação à dignidade de todas as mulheres. O grau da violação deve ser limitado àquelas que livremente aceitaram a situação. Portanto, se trata de situação à disposição da escolha das mulheres. É como o emblemático caso do arremesso de anões: um que aceite ter a sua suposta dignidade violada, não pode (ou não poderia) ser parâmetro para a violação de dignidade de todo o heterogêneo grupo de anões.
Surge, então, outra questão: o Estado pode atuar para definir o que é digno para as mulheres a despeito delas próprias?
O fetiche brasileiro por leis e normativas entendeu positivamente e resultou na Nota Técnica do Senacon com conclusão pela ilegalidade dos preços diferenciados. Como justificativa, as mulheres, mesmo que voluntariamente dispostas a aceitar a cortesia de baladas, precisam ter restabelecida a dignidade perdida, ou seja, precisam ser protegidas pelos paladinos estatais com o aumento do seu preço de entrada.
Como qualquer outra medida limitadora de liberdades individuais, os instrumentos precisam ser necessários e adequados para atingir o seu fim satisfatoriamente. Nesse caso, a medida está limitando a livre iniciativa, também consagrada no ordenamento jurídico, para salvaguardar as mulheres. Ou seja, o Estado precisará adotar medidas impeditivas efetivas à diferenciação dos valores de ingresso baseado em gênero e, assim, proteger a dignidade do grupo feminino. Como já concluímos pela desnecessidade da interferência estatal, faz-se agora uma análise sobre a adequação do instrumento proibitivo para o restabelecimento da dignidade perdida.
Ora, a mera proibição do Estado não é capaz de mitigar a demanda do mercado masculino por ambientes com mais mulheres. Pode ser que não seja simples, mas os estabelecimentos procurarão e se adequarão a outros meios para atender à sua demanda. As formas vão depender tão somente da imaginação ilimitada dos comerciantes, com o adendo sempre válido de se tratar de comerciantes com a criatividade aguçada, como é o caso dos brasileiros.
Também seria preciso aprofundar as consequências econômicas da decisão da Senacon, uma vez que sua repercussão pode trazer, a despeito de ser bem-intencionada, prejuízos às próprias mulheres. O rol proibitivo recaiu até mesmo sobre os restaurantes praticantes de preços diferenciados. Em rodízios de carnes e pizzas, por exemplo, os estabelecimentos não mais poderão praticar preços distintos, apesar da provável consideração interna de que mulheres consomem menos. Certamente a lógica de restaurantes é diferente da lógica de casas noturnas, mas a proibição abrangerá igualmente ambos e é difícil, sobremaneira neste último caso, visualizar benesses para o grupo alvo da proteção.
Cite-se também as casas noturnas com público homossexual. Existem aquelas que, privilegiando a integração apenas de determinado gênero, fazem a distinção de preço de forma a priorizar, a depender do valor do ingresso, qual público se fará presente no ambiente. Tais práticas também recairiam no rol proibitivo com consequências negativas igualmente indesejadas. Nesse caso, não apenas as mulheres estariam prejudicadas, mas o público homossexual beneficiário das práticas dos estabelecimentos mencionados também.
A inadequação da proibição de diferenciação nos valores dos ingressos, contudo, não obsta o Estado de atuar para combater as práticas consideradas machistas encontradas no mercado. Caso os burocratas realmente se importem com a existência da demanda masculina por ambiente com mais mulheres, o ideal seriam políticas oriundas da esfera Executiva com campanhas de conscientização que efetivamente diminuíssem a existência do uso de mulheres como “iscas” – como afirmou a própria Nota Técnica do Senacon e a decisão do Juizado Especial de Brasília.
É importante evidenciar que a sociedade já avança com vistas a rejeitar ambientes com práticas dessa natureza. Parte do público feminino apresenta irresignação com o direcionamento de casas noturnas para satisfação dos desejos do público masculino, não querendo dizer necessariamente que a atuação estatal seja a melhor forma de solucionar e combater essa realidade.
Aconteceu, por sinal, com as propagandas de cerveja. À medida que as mulheres passaram cada vez mais a ser consumidoras do produto e demonstravam insatisfação com as propagandas veiculadas pelas grandes marcas, a realidade publicitária passou por um processo de mudança, ainda que gradualmente. Hoje, apesar de ainda existirem publicidades direcionadas eminentemente para o público masculino, grandes marcas já se adaptaram à essa nova realidade, surgindo propagandas com viés quase sem níveis de machismo aparente.
É evidente que o mercado sempre praticará condutas com as quais não concordamos, mas isso não quer dizer que elas devam estar sujeitas à uma atuação proibitiva por parte do Estado. Tal constatação é ainda mais importante quando os discordantes podem simplesmente ignorá-las ou liderarem boicotes, independentemente de suas motivações.
Não cabe ao Judiciário, por meio de decisões difusas, ao Executivo ou mesmo ao Legislativo decidir pelas mulheres o que lhes é indigno ou não, sob pena de termos várias outras liberdades reguladas sob o pífio fundamento de atuação estatal com o fulcro de proteger nossa dignidade das nossas próprias vontades.
Um dado curioso sobre a ação ajuizada em Brasília se refere ao fato de o seu autor ser um homem (!) e não uma mulher, a qual seria a verdadeira vítima das condutas praticadas pelo estabelecimento de entretenimento em questão. Talvez esse dado só reforce como aquelas mulheres que se sentem violadas pela diferenciação de preços sequer cogitam participar desse tipo de ambiente porque o perfil do público presente no local, em geral, não as satisfaz.
A imaginação dos donos dos estabelecimentos será sempre ilimitada e, enquanto persistir a demanda de homens por ambientes com mais mulheres e algumas destas não se importarem com isso, as práticas para driblar as proibições e atender à demanda masculina se diversificarão. Passa-se a não diferenciar os preços, mas a dar outras facilitações para entrada de mulheres ou a se criar diversos embaraços para a entrada de homens. Não é papel do Estado agir como pai protetor que mima todas as suas filhas. Deveria ele perder seu tempo combatendo esse tipo de prática quando as próprias mulheres indiscutivelmente demonstram poder definir se querem ou não frequentar tais ambientes?
Prezado Estado, deixe-nos ir e escolher. Mulheres adultas e conscientes podem lidar sozinhas com as variadas opções de quais casas noturnas pretendem frequentar. Chega de paternalismo. Meu receio é amanhã não poder usar meu shortinho na balada porque estou afrontando minha própria dignidade.