O Brasil está assistindo a um caos político que tem como plano de fundo o progresso da Operação Lava-Jato. Dentre tantas notícias, editoriais e textões nas redes sociais, as colaborações premiadas são tema recorrente e, não rara as vezes, ouvimos opiniões infundadas a esse respeito.
Este texto tem por objetivo explicar o que são as colaborações premiadas, o que elas significam para a forma de se investigar corrupção, lavagem de dinheiro e crime organizado e, em seguida, apresentar alguns dados sobre o uso dessa ferramenta no âmbito da Operação Lava-Jato.
Para entender a existência das colaborações premiadas, é necessário compreender como que corrupção se dá hoje em dia. Apesar de ainda pagarem propina por meio de envelopes e maletas, esse não é o modus operandi favorito dos criminosos. É pouco seguro manter esse tipo de transação e, a depender dos valores, é muito difícil obter e movimentar tanto dinheiro em espécie. Assim, corruptos se blindam de diversas maneiras, como por meio de complexos sistemas de lavagem de dinheiro, tema que explorei em outro texto aqui.
Além disso, Della Porta e Vannucci (2012) argumentam que, por se tratar de conexões instáveis e sem respaldo legal, valores como confiança, amizade e lealdade são essenciais para se estruturar a complexidade necessária de um esquema de corrupção. Não é qualquer um que pode fazer parte de um círculo social corrupto ou, tendo contato com essas pessoas, ter ciência e participação em suas atividades ilícitas. Noutras palavras, eu e você, caro/a leitor(a), não conseguiríamos pagar propina para um político não somente por falta de recursos financeiros, mas por que nos faltaria um tipo de vínculo pessoal e social específicos com elas.
Por causa desses dois fatores, é muito difícil investigar e obter provas robustas o suficiente para condenar alguém. Dessa forma, um dos vetores de uma política criminal eficiente reside na criação de incentivos que levem um criminoso a cessar suas benesses na corrupção e a se desvincular desse restrito círculo social.
A colaboração premiada aparece justamente nesse cenário como ferramenta de acesso a informações que não seriam obtidas sem que alguém de dentro as fornecesse. Portanto, esse será o centro das negociações entre investigado e investigadores: quanto mais provas apresentadas, mais branda a pena.
Segundo entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal (INQ 3979/DF), o conteúdo dos depoimentos colhidos em colaboração premiada não é prova por si só eficaz, tanto que descabe condenação embasada exclusivamente neles, nos termos do art. 4o, § 16, da Lei 12.850/2013; isto é, as colaborações premiadas funcionam como uma ferramenta que facilita a obtenção de uma prova.
Por exemplo, um doleiro pode dizer que um deputado recebeu propina por meio de uma conta na Suíça. Apesar de não constituir prova, ao afirmar isso, o doleiro deve apresentar informações que facilitem os investigadores nas diligências que resultem em extratos bancários, relatórios financeiros, documentos de abertura da conta bancária que comprovem o que foi alegado. Isso, de fato, contará como conjunto probatório no processo criminal.
Esse sistema aumenta a qualidade das investigações, pois reduz o tempo de obtenção de provas e facilita a análise delas, aumentando a probabilidade, por consequência, de sentença condenatória. Não obstante, réus não-colaboradores devem manter seus direitos de defesa assegurados. O fato de ser mais difícil contestar provas obtidas em sede de delação não significa condenação automática, questão essa usualmente ignorada pela mídia ao expor áudios, vídeos e demais documentos.
Como garantia, caso os investigadores venham a ter conhecimento de que o colaborador mentiu, fraudou ou omitiu informações, o acordo de colaboração pode ser cassado e o réu perde todos os benefícios negociados. Essa cláusula é importante para que um colaborador pense bem antes de mencionar alguém ou fato. E mesmo com esses desincentivos, ainda há gente que mente ou dá informações incompletas às autoridades e, por mais que isso não apareça tanto na mídia, em pelo menos três situações o MPF revogou o acordo, estando Paulo Roberto Costa sob perigo de ter o mesmo destino.
Colaboração premiada não previne ninguém de ser condenado por seus crimes. Normalmente, um acordo estabelecerá uma pena limite, de modo que a soma das condenações em todos os processos relacionados a mesma investigação não ultrapassarão esse teto. Ademais, os colaboradores podem cumprir penas ainda mais brandas do que suas condenações, ainda que não tenham alcançado o limite estabelecido no acordo. Além dessa leniência, os acordos preveem planos de progressão de regime mais benéficos do que a Lei de Execução Penal (Lei 7.210/84).
Por exemplo, Nestor Cuñat Cerveró foi condenado a 23 anos e 9 meses de prisão. Por causa do acordo de delação, a soma dos demais processos contra ele não passarão de 25 anos. Na prática, isso não fará muita diferença, pois a pena de fato a ser cumprida foi estabelecida em 4 anos e 9 meses, sendo apenas 1 ano e 5 meses em regime fechado, sendo o restante em regimes mais brandos, como prisão domiciliar.
Nesse sentido, é possível comparar as penas impostas aos colaboradores em face dos não-colaboradores e, assim, perceber a extensão dos benefícios.
Cabe frisar que a média das penas dos colaboradores antes do benefício é 245 meses, ou seja, muito além da média dos não-colaboradores. Ademais, essa discrepância é ainda mais evidente quando recortamos apenas as dez maiores penas aplicadas em cada um desses formatos:
À medida que os inquéritos avançam, mais informações os investigadores reúnem e, assim, maior será a dificuldade para um réu apresentar fatos novos em sede de colaboração premiada. Por isso, caso apareçam novos colaboradores, a tendência é que sejam tão reveladoras ou mais do que as recentes declarações dos executivos da Odebrecht e da JBS. Se assim não fosse, nem os réus e nem a Justiça teriam interesse em assinar um acordo, pois ambos buscariam seus objetivos por meio da forma comum do processo penal.
Essa tendência pode ser observada no gráfico abaixo, demostrando que, apesar de ser possível obter reduções significativas, os primeiros colaboradores tiveram menos dificuldade para conseguir tais benefícios comparado com os mais recentes.
Portanto, há também um incentivo para que os colaboradores não demorem em buscar as autoridades para contarem o que sabem a respeito de um esquema de corrupção. O risco de não ser rápido o suficiente se traduz em maior expectativa na apresentação de provas e benefícios reduzidos.
A colaboração premiada funciona como um incentivo positivo quando oferece amplos benefícios aos colaboradores, e como incentivo negativo aos não-colaboradores quando viabiliza produção de provas de forma mais eficiente e, consequentemente, resultando em condenações mais severas. Nesse sentido, pode-se dizer que a colaboração premiada, ainda que em construção no Brasil e com algumas falhas naturais de quem introduz um instituto jurídico, é uma política criminal interessante.
Entretanto, como já sustentei aqui em outras oportunidades, não devemos nos deixar acomodar ao ver penas rígidas sendo aplicadas em casos de corrupção. Apesar de importante, isso não muda os reais motivos para que corrupção ocorra. Punir, mas manter as mesmas formas de relação entre setor público e privado, capitalismo de compadres e alta burocracia é ser simplista demais na análise de um fenômeno tão complexo como a corrupção.
Há de se mencionar o debate sobre a forma com que as negociações foram feitas. Alguns advogados reclamam – e com razão, se verídico – que as autoridades públicas se utilizaram das prisões preventivas para forçar acordo. Apesar do Ministério Público Federal afirmar que a maioria dos termos foram assinados com réus em liberdade, não temos dados disponíveis sobre quando as tratativas começaram e a condição com que chegaram num acordo. Trata-se de debate importante e que merece maiores esclarecimentos, mas que não foi o foco aqui.
Tampouco abordamos a moralidade de se reduzir tão drasticamente as penas de corruptos pelo “simples” fato de, agora, estarem colaborando com as investigações. A balança entre beneficiar delatores para obter informações e punir quem cometeu ilícitos pode ser de questionada; e, para tanto, precisamos entender como se dão os incentivos e sanções nesse sistema, objeto desse nosso estudo. Nesse sentido e argumentando pela ilegalidade dos acordos, vale conferir as críticas tecidas por José Canotilho e Nuno Brandão aqui.
Para os cálculos apresentados neste texto, foram utilizados tão somente os acordos de conhecimento público até o dia 12 de maio de 2017. Ademais, alguns colaboradores ainda aguardam a primeira sentença condenatória e, por isso, não é possível calcular a dimensão dos benefícios nesses casos.
O levantamento dos dados teve o auxílio de Matheus Mayer Milanez e Victoria Albuquerque Camara.
Referência bibliográfica
Della Porta, D., & Vannucci, A. (2012). The hidden order of corruption : An institutional approach (Advances in criminology). Farnham: Ashgate.