Durante quase seis meses personalidades da esquerda brasileira agiram, de forma justificada, como defensores primordiais dos direitos humanos. O desaparecimento do assistente de pedreiro Amarildo foi um dos mais patentes casos de violação de direitos e liberdades individuais na história recente do país. Agentes do estado jogaram fora o parco respeito que têm ao devido processo legal e sequestraram, torturaram e executaram uma pessoa – tudo às margens das leis. Como repetidamente acontece, o aparato corporativista da polícia fez o que pôde para proteger os criminosos de farda. Acusaram-no de bandido e traficante – como se caso ele fosse um bandido a polícia tivesse autorização para torturá-lo. A culpa, segundo a corporação, era da vítima.
Tudo estaria bem se tal defesa, embora justificada, não fosse uma defesa puramente de conveniências. Se o grito de liberdade não fosse substituído por um hiato silencioso no momento em que estudantes venezuelanos são mortos ao protestarem contra uma igualmente opressora polícia, contra uma mílicia paramilitar que é leal exclusivamente a seu generalíssimo comandante, contra a escassez que limita seu potencial de vida, contra a falta de oportunidades e contra a limitação de sua liberdade. Nesse caso, a culpa, segundo a narrativa dos mesmos denunciantes, não é dos opressores agentes do estado. Não é de quem aponta o fuzil para um povo desarmado, desamparado e desafortunado. Não é dos bandidos de farda. A culpa, segundo os corporativistas, é das vítimas.
Gélido é o silêncio mortal à esquerda brasileira sobre as mortes estudantis causadas pela polícia e milícia socialistas na Venezuela. No mundo distópico dos socialistas brasileiros, a polícia venezuelana é oprimida e os estudantes mortos e feridos são fascistas. A mentalidade de grupo, com seu objetivo teleológico baseado em uma causa que define o destino último de um povo, justifica todos os desvios éticos. Até mesmo o assassinato. Algumas vidas passam a ter mais valor que outras – a depender da ideologia por elas professadas.
Ideologias desumanizam seus oponentes até que as vidas deles não valham nada e o ideólogo se torne indiferente aos problemas dos oprimidos. Nacionalistas e militaristas repetidamente fazem a mesma coisa. Para defender a ação militar dos Estados Unidos que matou Abdulrahman al-Awlaki, uma criança americana de dezesseis anos, o porta voz da Casa Branca Robert Gibbs disse que a justificativa para tal infanticídio era que o pai dele era um terrorista. Se você é um filho de terrorista, segue a lógica, seus direitos humanos são menos iguais do que os direitos dos humanos direitos.
Em casos mais próximos à terra brasilis o mesmo padrão se repete: à direita e à esquerda. A aplicabilidade seletiva dos princípios de defesa da liberdade e direitos individuais salta aos olhos. A direita nega os direitos de rapazes linchados em público presos a um poste enquanto defende a liberdade de cubanos exilados, fugidos do Mais Médicos, que pedem refúgio no Congresso; e a esquerda nega a liberdade dos cubanos exilados enquanto defendem os direitos dos rapazes do poste. As posições políticas não derivam dos princípios defendidos – mas dos interesses subjacentes. Feita a decisão crua e pragmática, com base nas colorações políticas, forjam-se os argumentos por engenharia reversa – da conclusão aos princípios. Os princípios alteram-se conforme o contexto político.
Os socialistas defenderam Amarildo contra a opressão estatal, mas estão prontos para defender os opressores estatais contra os Amarildos venezuelanos. Se Amarildo fosse Venezuelano e protestasse contra Maduro, os socialistas brasileiros se calariam. Não haveria choro nem vela. A culpa, diriam, é da vítima – que obviamente deveria ser um agente do imperialismo ianque.
Direitos e liberdades individuais não fazem sentido se compartimentalizados. Não fazem sentido se seletivamente aplicados a alguns indivíduos. Liberdade só é liberdade se você a garante para quem discorda de você – ela é universal e inalienável. E liberdade só é liberdade se ela não vier em partes – ela é universal e indivisível.
As múltiplas contradições recentes de direitistas e esquerdistas servem pra mostrar que a real disputa não é entre eles – que guardam tantas similaridades em suas hipocrisias e contradições. A disputa é entre aqueles que querem buscar a centralização do poder para oprimir seus oponentes e desumanizá-los e os que querem ampliar as liberdades em todos os seus aspectos. A disputa é entre os totalitários – de direita e de esquerda – e você.
A negação dos direitos dos outros, independentemente da ideologia deles, é uma ameaça real aos seus direitos. Por isso, é preciso que quem é antitotalitário por princípio se levante contra cada violação e opressão. Charles Bukowski dizia, com brilhantismo, que “você começa a salvar o mundo salvando uma pessoa de cada vez; todo o resto é complexo de grandeza romantizado ou política”. Não faça política. Levante-se contra a violência (da) política. Violência política que se expressa de forma cristalina na ponta do cassetete bolivariano e no bico do coturno da PM carioca. Levante-se e ajude a salvar um Amarildo de cada vez – independentemente da cor da ideologia (ou da cor do passaporte) dele.