“Eu respeito e honro todo tipo de raça, origem e cultura. Estou realmente arrependido” – disse Pharrell Willams sobre as críticas ao posar com cocar na capa de uma revista.

Ninguém é totalmente branco no Brasil. Somos um país miscigenado. E acho que cada um deve se vestir da forma que se sente bem” – Anitta, sobre as críticas ao publicar foto usando dread em uma rede social.

“Jovem com câncer leva bronca por usar turbante” – notícia do jornal O Estado de São Paulo.

Esses são três, dentre tantos casos, no Brasil e no mundo, que tratam da chamada apropriação cultural. Afinal, o que seria isso?

A professora Patricia Anunciada explica que:

diversos símbolos da cultura negra estão em alta, mas nas mãos de pessoas brancas. O problema é que eles estão sendo mercantilizados e estão perdendo seus significados. A religião afro-brasileira virou quase que um estudo antropológico, algo exótico. Iemanjá teve a pele clareada, o acarajé está sendo conhecido como bolinho de Jesus e o turbante virou um simples acessório. O turbante é uma peça histórica, religiosa e de empoderamento feminino. E pior, a população negra está sendo diminuída por fazer uso desses símbolos. Eu já sofri preconceito por estar usando um turbante e vejo o preconceito contra negros de tranças, rastafáris e dreads. As pessoas se sentem no direito de atacá-los e diminui-los. Quando está na cabeça de alguém branco é “estiloso”. São dois pesos e duas medidas para coisas iguais”.

Bárbara Paes afirma que:

a apropriação cultural acontece quando elementos de uma cultura são adotados por indivíduos que não pertencem a esta cultura. Isso inclui o uso de acessórios e roupas, a exploração de símbolos religiosos, o sequestro de tradições e de manifestações artísticas. A apropriação cultural é especialmente terrível quando se trata de elementos de uma cultura historicamente marginalizada e explorada”.

Basicamente, podemos entender, então que a chamada apropriação cultural seria: (i) o uso descontextualizado de determinado elemento típico de uma etnia por alguém que não pertence àquele determinado círculo; (ii) a exploração financeira desse elemento; e (iii) a forma diferenciada como é tratada a pessoa que se vale do elemento cultural quando é ou não membro de minoria.

Para melhor compreensão do tema, primeiro precisamos entender o que seria cultura e, a partir daí, refletir sobre a existência de domínio exclusivo sobre ela.

Segundo o antropólogo Edward B. Tylor, cultura é “todo aquele complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, a lei, os costumes e todos os outros hábitos e capacidades adquiridos pelo homem como membro da sociedade“.

Vale ressaltar que na sociologia é pacífico que o contato com culturas diferentes também modifica alguns aspectos de nossa própria. Chamada de aculturação, onde uma cultura absorve ou adota certos aspectos de outra a partir do seu convívio, é comum em nossa realidade globalizada, onde temos contato quase perpétuo com culturas de todas as formas e lugares possíveis.

Essa absorção de elementos sempre ocorreu na história do mundo e, dentro desse dinamismo, símbolos sofrem ressignificações constantes. Um dos exemplos mais emblemáticos é a suástica, que representava felicidade e boa sorte entre budistas e se tornou o símbolo do nazismo.

Assim como a coruja, que para os astecas, representava o Deus dos Infernos, enquanto na Europa Medieval, era vista como disfarce utilizado por bruxas e, na Grécia Antiga, era o símbolo da sabedoria.

O turbante, por sua vez, tem seu uso difundido ao redor do mundo, com as mais variadas finalidades, acreditando-se ter surgido no oriente, sendo mais utilizado na Ásia e na África.

O que eu procuro com esse ponto? Mostrar que, baseado na literatura de história, antropologia e sociologia inexiste um conceito de monopólio sobre determinado uso ou elemento cultural. É perfeitamente natural a comunicação entre culturas e influências recíprocas.

O Brasil é um grande exemplo desse verdadeiro mix de culturas, desde sua colonização, até a vinda dos imigrantes, que construíram e seguem montando nosso vocabulário, nossa culinária e forma de viver.

O próprio autor que conversa com vocês agora é negro, filho de mãe branca, com nome indígena.

Esclarecidas essas premissas, temo que não seja possível falar em apropriação cultural. Símbolos surgem todos os dias em vários lugares e, não raro, representam coisas distintas para aquelas sociedades. Assim como é normal alguém ver um costume de outra pessoa e adotar para si, sem que isso gere necessariamente um desrespeito.

Uma das nossas maiores figuras artísticas da história, Carmen Miranda, usava turbante. Assim como um dos maiores ícones do feminismo, Simone de Beauvoir. Nenhuma das duas era negra.

O que se reclama, em regra, é a forma como se utiliza determinado símbolo ou elemento cultural, sem refletir acerca de seu significado. O problema é que a crítica acaba sendo extremamente subjetiva e realizada por presunção, o que não contribui em nada para o debate.

Assim, o conceito de apropriação cultural não resiste porquanto não há uma propriedade sobre os elementos, assim como não se pode permitir que alguém restrinja a liberdade do indivíduo para utilizar um elemento ou realizar determinada prática. O passo é demasiadamente longo para isso. A quem deveríamos pedir permissão? Quem realmente está legitimado a me dizer o que usar no meu dia a dia?

São perguntas que seguem sem resposta.

Por esse motivo, não é coerente apontar exploração ilegítima de um elemento, na medida em que inexiste, em regra, exclusividade sobre ele.

Por fim, observamos casos de muito barulho na mídia, como as polêmicas recentes apontadas no início do texto.

Entretanto, antes de refutar completamente as reclamações ocorridas, é preciso refletir e concordar que há aspectos reconhecidamente problemáticos envolvendo esses temas.

Em outras palavras: não é mimimi. A estigmatização das minorias que utilizam seus adereços étnicos é uma realidade, como uma das formas de manifestação do racismo.

Explico: é plenamente aceito uma pessoa andar com um crucifixo no pescoço como adereço, sem que ninguém se importe. Todavia, não vemos com a mesma naturalidade, a utilização de guias ou fios-de-conta do candomblé ou umbanda.

A valoração social do cabelo grande muda completamente quando ele é crespo ou liso, até mesmo a definição de cabelo grande varia nesse caso. Crianças sofrem nos colégios e adultos nos seus empregos com isso.

A avaliação social se altera muito conforme seja o indivíduo pertencente ou não a uma minoria racial – isso é um ponto pacífico, que é completamente diverso de querer limitar a liberdade individual alheia.

Refletir sobre como o racismo se manifesta de várias maneiras em nossa sociedade faz parte de nossa evolução, mas ter a exclusividade sobre determinado elemento ou símbolo é um conceito que vai de encontro à história.

No fluxo de globalização em que vivemos, conhecer e compreender as minorias faz com que seja muito mais fácil de respeitar sua história de renegação e exploração, possibilitando mudanças.

Disseminar seus símbolos aproxima e deve ser incentivado a fim de que ninguém mais seja questionado por usar uma bata ou repreendido por trançar o cabelo.

Na era em que são exigidas cotas raciais para integração, impedir outro de usar um turbante ou dread ou cocar parece um contrassenso.

Apontar que o racismo existe e deve ser combatido é sempre louvável, mas precisamos manter o debate dentro dos parâmetros científicos e de olho no objetivo real, que é a erradicação da discriminação.

Acho que vale a pena nos lembrarmos da Carta de Meca, escrita por Malcolm X, onde ele relata a mudança de sua visão separatista entre brancos e negros para uma pacificadora. Seguem alguns trechos:

“Havia dezenas de milhares de peregrinos, de todo o mundo. Eram de todas as cores, desde loiros de olhos azuis a negros africanos. Mas estávamos todos participando do mesmo ritual, mostrando um espírito de unidade e fraternidade que minhas experiências nos Estados Unidos me fizeram acreditar que nunca poderia existir entre o branco e o não-branco.

A América precisa entender o Islã, porque esta é a única religião que apaga de sua sociedade o problema racial. Ao longo das minhas viagens no mundo muçulmano, encontrei-me, conversei e comi com pessoas que na América seriam consideradas “brancas” – mas a atitude “branca” foi removida de suas mentes pela religião do Islã. Eu nunca vi uma fraternidade sincera e verdadeira praticada por todas as cores juntos, independentemente de sua cor”.

[…]

“Cada hora aqui na Terra Santa me permite ter maiores percepções espirituais sobre o que está acontecendo na América entre preto e branco. O negro americano nunca pode ser culpado por suas animosidades raciais – ele está apenas reagindo a quatrocentos anos de racismo consciente dos brancos americanos. Mas como o racismo leva a América pelo caminho do suicídio, creio, a partir das experiências que tive com eles, que os brancos da geração mais jovem, nas faculdades e universidades, verão a caligrafia nas paredes e muitos deles Volte-se para o caminho espiritual da verdade – o único caminho deixado para a América para afastar o desastre que o racismo inevitavelmente deve levar”.

Abril de 1964

El-Hajj Malik El-Shabazz
(Malcolm X)

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