Você já viu acontecer muitas vezes. Na internet, ou num bar, ou numa festa de aniversário, tanto faz. Começa assim: fulano emite uma opinião sobre os vazamentos da Lava-Jato ou a legalização do aborto, o que for. Beltrano discorda. Aí fulano retruca, beltrano revida, argumento pra cá, argumento pra lá, e, em certa altura do campeonato, o tempo fecha. Fulano se irrita e acusa beltrano de má-fé, beltrano se indigna e manda fulano pastar, fulano descreve de maneira pouco elogiosa a profissão da mãe de beltrano, etc e tal.
O que está acontecendo aqui? Beltrano é realmente um mau-caráter? Ou quem sabe o mau-caráter é fulano, com sua evidente predileção por acusações infundadas? Será que acusações de má-fé são tão comuns em discussões sobre política porque só canalhas tem fortes convicções políticas?
É claro que não. Vamos falar aqui sobre tribalismos políticos e viés cognitivo: o segundo explica em boa medida os primeiros. E tudo isso é relevante pro debate político, notadamente aqui no Brasil a partir de 2014.
Tanto experimentos de psicologia quanto situações do cotidiano mostram que tendemos a imputar más intenções a integrantes de “outras tribos”que discordam da gente — e que isso acontece mesmo na ausência de provas concretas dessas más intenções. Inversamente, quando pertencemos a determinado grupo que é beneficiado pelas decisões de um determinado governo, então tendemos a acreditar sinceramente — e, de novo, muitas vezes independentemente de evidência na direção contrária — que aquele governo é necessariamente benéfico para a sociedade como um todo.
O debate político brasileiro está repleto de exemplos desses fenômenos. Duas tribos antagônicas interpretam as mesmíssimas gravações de um operador político de maneiras diametralmente opostas: onde os membros de uma tribo ouvem uma conspiração para derrubar uma presidente que luta contra a corrupção, os membros da outra escutam a presidente tentando interferir na Justiça. O tribalismo leva artistas que se sentem ameaçados pela redução de subsídios estatais a acreditarem piamente na tese de que o impeachment é golpe — mas é claro que a solidez ou fragilidade das bases legais do impeachment independem completamente de quanto dinheiro a Petrobrás deve colocar em peças de teatro experimental. A indignação nesses casos é sincera, e não uma manobra retórica calculada.
O tribalismo distorce de maneira estatisticamente mensurável a nossa visão de mundo. Num clássico da literatura de psicologia social, cenas filmadas de um jogo de futebol americano entre os times de Dartmouth e de Princeton foram mostradas para alunos das duas instituições. Entre outras discrepâncias dramáticas, os alunos que estudavam em Princeton viram os jogadores de Dartmouth cometerem o dobro das infrações apontadas pelos alunos que estudavam em Dartmouth.
Em outro estudo, os alunos — essas eternas cobaias dos psicólogos experimentais — avaliaram duas metodologias, A e B, que supostamente mediam o efeito da pena de morte sobre a criminalidade. Só que os números mostrados para o alunos eram falsos; para metade dos alunos a metodologia A gerava resultados que sustentavam a eficácia da pena de morte na dissuasão de crimes violentos, e para a outra metade a metodologia A mostrava números que apontavam a ineficácia da pena de morte. Note que a metodologia A era sempre a mesma, e idem para a metodologia B. O que mudava eram somente os dados supostamente produzidos por cada uma das duas metodologias.
O resultado? Os alunos atribuíram notas altas às metodologias que apoiavam sua posição e notas baixas às metodologias que produziam números que iam contra as suas posições. As tribos pró-pena de morte e anti-pena de morte interpretavam as metodologias à luz de seus resultados — e não se davam conta disso! Quando perguntados sobre o assunto, os alunos afirmavam convictos que tinham avaliado as duas metodologias por si só, sem levar em conta os resultados que elas indicavam.
O tribalismo grupal é uma extensão de um fenômeno, também muitíssimo bem documentado pela psicologia acadêmica, que vale no nível individual: tendemos a gostar de defender pessoas que são generosas ou gentis conosco, mesmo em face de evidência de que elas são desonestas ou cruéis com muitas outras pessoas. Pense naquele ditador sanguinário que é visto como um santo pelos parentes, naquele canalha de quem você gosta porque (você acha que) ele sempre tratou você bem.
Agora uma consideração um pouco mais abstrata, mas relevante no contexto de disputas políticas ou ideológicas. Economistas, muitas vezes, reduzem o comportamento individual e coletivo a uma busca estratégica, e em certo sentido racional, dos próprios interesses. Mas a vertente da economia comportamental, devidamente embasada por evidência empírica, cada vez mais aponta em outra direção: as posturas adotadas por tribos não resultam necessariamente do cálculo frio dos seus próprios interesses; enfim, há um tanto de psicologia social, “irracional”, em ação aqui.
Dani Rodrik, do Institute for Advanced Studies de Princeton, é um dos economistas acadêmicos mais originais do planeta. Num artigo fascinante publicado no Project Syndicate, ele conta como percebeu, após ter protagonizado uma investigação política digna de um romance de Le Carré, que graças a uma narrativa bem desenhada, combinada com o pensamento de manada, boa parte da intelligentsia turca adotou, sem perceber, opiniões não somente demonstravelmente falsas, mas também lesivas aos seus próprios interesses.
Além de poder adotar inadvertidamente posturas que contrariam seus interesses, a própria identidade de uma tribo é um tanto maleável. Experimentos em laboratório mostram que é bastante fácil imprimir de maneira artificial uma identidade tribal a estudantes universitários, com consequências marcantes em termos tanto comportamentais quanto de interpretação de fatos e motivações. A identidade aqui pode ser criada por meio de expedientes absolutamente arbitrários, como vestir um grupo de amarelo e outro de azul. (Qualquer semelhança com torcidas de futebol é muito mais do que uma mera coincidência.)
Nesses experimentos, uma vez delimitados grupos distintos, as atitudes tribais emergem naturalmente, involuntariamente e inconscientemente: os membros das tribos artificiais geralmente negam — e o fazem com sinceridade — que sua percepção esteja sendo influenciada pela cor da camisa que vestem, ou pelo lado da sala em que foram colocados, ou o que for. Mas o comportamento deles revela diferenças significativas, e muitas vezes enormes, entre os membros das duas tribos.
De onde vem essa tendência ao tribalismo? Darwin explica. A espécie Homo sapiens existe há pelo menos 100.000 anos, mas a civilização surgiu há menos de 10.000 anos. Ao longo de quase toda a nossa existência, o reflexo da identificação automática com o grupo ao qual pertencíamos, assim como o da hostilidade em relação aos outros grupos, era estrategicamente benéfico: se você era do clã do Urg e via membros do clã do Grog se esgueirando pra dentro do seu vale, o mais prudente era supor que eles estavam chegando pra raptar as mulheres e caçar os mamutes, e não numa expedição antropológica ou para trocar dicas sobre como pintar paredes de cavernas.
Na dúvida, o mais seguro era partir pra cima para tentar afugentar os intrusos. Se eles resistissem, paulada no crânio do Grog e companhia. Genes hippies, com tendências da linha paz-e-amor-universal, tendiam à rápida extinção durante a Idade da Pedra. O tribalismo é uma consequência lógica da evolução da nossa espécie.
Acontece que, no mundo contemporâneo, esse instinto tribalista se torna em grande medida uma característica mal-adaptativa. Em contextos benignos, o tribalismo se manifesta na forma de saudáveis rivalidades entre times de futebol e escolas de samba. Em muitas outras esferas, ele pode descambar para conflitos étnicos, sectarismo religioso, eleições rancorosas, e, num nível mais prosaico, discussões de bar alguns tons acima do razoável.
No limite o tribalismo leva a uma cegueira ideológica que faz do outro um inimigo dissimulado e sempre motivado por interesses escusos. A discussão de políticas públicas deixa de ser um debate racional. Você é bom, a sua tribo é boa, as outras tribos são más e ponto. Se beltrano defende a Dilma, então ele é um petralha que gosta de corrupção; se fulano apoia o impeachment, então ele é um golpista que detesta pobres-que-andam-de-avião. Flamenguistas são bandidos, botafoguenses são covardes. Grog ruim, Urg bom.
É claro que há pessoas e argumentos deliberadamente desonestos, mas, na grande maioria das controvérsias políticas, ambos os lados, inclusive os acusadores e os acusados, estão genuinamente indignados. Como está genuinamente indignada a torcida do Flamengo quando o juiz marca um pênalti pro Vasco, como está, igualmente, a torcida do Vasco quando os jogadores do Flamengo cercam o juiz pra reclamar da marcação desse mesmo pênalti, como estão os petistas com o impeachment conduzido pelo Cunha, e como estão os anti-petistas com o sítio do Lula que não é do Lula.
Mas você sabe disso, já percebeu há tempos que muita gente cai nessa armadilha, certo? Legal. Então vamos falar sobre por que você também cai nela.
O chamado viés da autoconfiança, extensamente documentado pela dupla Kahneman e Tversky, mostra que as pessoas em geral superestimam sua competência. De acordo com um estudo famoso, 93% dos motoristas americanos se consideram acima da média. (Pra agravar o autoengano, o efeito Dunning-Kruger, um caso particular do viés da autoconfiança, mostra que quanto menos uma pessoa sabe sobre um assunto mais convicta ela é de suas opiniões).
Esse tipo de viés se aplica, e muito, à política: as pessoas são muito menos imparciais do que acreditam ser — e a parcialidade aumenta quanto menos elas refletem sobre a própria parcialidade, sobre o quão distorcivo pode ser vestir a camisa, torcer por um partido, ou em geral adotar uma tribo.
Temos aqui o viés agindo em cima do viés: um viés de segunda ordem. O viés tribal faz com que nossas opiniões sejam formadas de maneira parcial, e o viés da autoconfiança faz com que a gente tenha certeza de que está sendo imparcial — o que aumenta a nossa convicção quanto às nossas opiniões parciais.
Mas há alguma esperança. O livro “Subliminar” é essencialmente um compêndio de vieses inconscientes. Seu autor, o físico Leonard Mlodinow, conclui o livro com a constatação de que com reflexão, atenção aos fatos, e autocrítica é possível minimizar as distorções cognitivas, inclusive as tribais.
Enfim, é preciso estar alerta para essas atitudes em nós mesmos. Se você está absolutamente convicto de que é imune a esse tipo de viés, bem, então você quase certamente padece do viés da autoconfiança.
Em maior ou menor grau, todo mundo (exceto eu) está sujeito aos vieses cognitivos grupais, e, portanto, ao tribalismo político. Destarte, na dúvida, pegue leve na próxima discussão sobre política: as colocações do seu interlocutor provavelmente são tão bem-intencionadas e sinceras quanto as suas.
“Leia a Bíblia”, diz o beato, preocupado com a alma alheia. “Leia Kahneman”, digo eu, preocupado com a lucidez política alheia.