Em dois textos anteriores, eu comentei sobre a existência do sistema de saúde público dos EUA e sobre o seu funcionamento. Recentemente, eu também ministrei uma palestra pelo Instituto Liberal do Centro-Oeste sobre o sistema de saúde americano — tanto público como privado –, que estará disponível para visualização on-line em breve. O objetivo desse texto é dar continuidade às idéias explicadas anteriormente, apresentando algumas informações em maiores detalhes.

Antes de começar qualquer texto explicando a evolução dos sistemas de saúde na América, é importante relembrar algumas definições que já apresentadas em artigos anteriores — sem elas, é impossível navegar pelo mar de mentiras propagado pela mídia brasileira e americana sobre o assunto. Primeiramente, vamos relembrar os tipos de sistema de saúde:

  1. Sistema socializado: o governo regula o fornecimento de serviços e é o dono de hospitais, contratador dos médicos e comprador dos insumos médicos. O exemplo mais fácil de se lembrar desse sistema é o SUS brasileiro.
  2. Sistema misto: o governo regula o fornecimento dos serviços médicos, o licenciamento de profissionais e produtos, além de poder pagar diretamente pelos serviços prestados e pelos bens comercializados no setor de saúde. Esse é o sistema de planos de saúde no Brasil, é o sistema de saúde da Alemanha, da Suíça e de diversos outros países.
  3. Sistema de mercado: pessoas, através de trocas voluntárias, controlam quais serviços são ofertados, qual o nível de qualidade desejado e qual a oferta e demanda pelas partes do sistema. Provedores competem por clientes no preço e na qualidade. O governo, no máximo, ajuda a custear — de forma não discriminatória com vouchers, por exemplo — parte dos valores com repasses direitos para a população e pode servir como mediador e conflitos — sistema de justiça. Esse é o sistema presente em praticamente todos os serviços estéticos que vemos no Brasil e no mundo. Também é um sistema muito presente no campo de cirurgias plásticas e de correção de problemas de visão.

Em praticamente todos os países do mundo, nós vemos a existência de mais de um sistema de saúde. Nos EUA o cenário não é diferente. Como falado anteriormente, existem sim um sistema de saúde pública que atende na casa de 120 milhões de pessoas, mas ele não é socializado como o SUS. Isso gera grande parte da confusão que vemos em reportagens e debates políticos. Esse fato também facilita a propagação de mentiras sobre a realidade americana, pois muitas pessoas acham que a única forma de o governo fornecer serviços de saúde é sendo dono de hospitais e contratante de médicos, enfermeiros, dentistas, etc.

Vale a pena ressaltar que os sistemas de saúde pública americanos são mais ou menos eficientes conforme a unidade da federação analisada e o nível de regulamentações aos quais eles estão submetidos, mas eles estão lá. Às vezes o Medicaid de Indiana é bem melhor do que o da Califórnia e, caso um jornalista ou documentarista só olhe um dos estados, ele estará dando uma visão incompleta do que acontece. Além disso, mesmo no pior caso, os diversos sistemas públicos americanos ainda são tão eficientes — a nível populacional — quanto os sistemas socializados da Europa ou o sistema misto do Canadá.

Outro fator importante a se analisar é que, em qualquer análise, as diferenças populacionais devem ser levadas em consideração. Por exemplo, um país que tem mais fumantes, tem mais chance de ter mais mortes por causa de tumores associados ao cigarro. Caso as mortes estejam em valores parecidos com outros países com menos fumantes, isso é uma demonstração de que o serviço de saúde está funcionando. O mesmo vale com questões relacionadas a dieta da população, com hábitos de exercício, com doenças infecto-contagiosas, etc. No caso da América, problemas graves como o sedentarismo e a obesidade afetam a incidência de doenças como aquelas que atingem o sistema cardiovascular, diabetes, alguns tipos de câncer e isso levaria, por si só, a uma sobre-representação dessas condições nos cortes populacionais, sem que isso indique um problema do sistema de saúde. Como os dados de mortalidade dos pacientes doentes são similares a ou melhores que outros países da OCDE, vemos que o sistema tem funcionado.

Além de analisar a questão de quais tipos de sistema existem, devemos lembrar que a existência de entidades reguladoras — como Anvisa e ANS — altera a dinâmica do mercado da saúde — seja o mercado de um sistema socializado, seja de um “sistema puramente de livre mercado”. Essas agências são constante alvo de captura regulatória e servem para favorecer aliados políticos, são exemplos de problema do conhecimento — como descrito por Hayek –, além de, em geral, diminuírem o bem estar econômico dos agentes de mercado seja dos que demandam serviços e bens, seja dos que os oferecem.

Existem tipos de regulamentação que alteram completamente a dinâmica de um mercado, não estando relacionados bens e produtos específicos. Essas regulamentações, que serão chamadas de regulações de sistema, dizem como o mercado como um todo deve funcionar, definem o padrão de competição dos atores, obrigam pessoas a contratar serviços que elas voluntariamente não desejariam, alocam recursos de forma ineficiente, entre outros aspectos. Para entendermos o sistema de saúde dos EUA é preciso analisar quatro dessas formas de regulação:

  1. Managed competition (Competição controlada): é um sistema em que um agente que não os usuários define as regras de competição entre os fornecedores, a fim de supostamente evitar a falta de qualidade ou falta de competição em preços pelos provedores de bens e serviços. Parece algo complexo, mas um jeito fácil de visualizar essa regulação é quando um empregador oferece duas ou três opções de plano de saúde para que o empregado escolha qual contratar. O empregador pagará parcial ou totalmente a conta e ele definiu quais são as opções interessantes, tentando imaginar o que o funcionário buscaria em um plano de saúde.
  2. Mandado a empregadores: é a definição por lei de que empregadores devem oferecer a seus empregados um determinado pacote de benefícios, como vale transporte, vale alimentação, plano de saúde. Essa determinação legal proíbe acordos voluntários entre empregados e empregadores que visem maximizar os salários reais dos empregados.
  3. Mandado individual:  é a obrigação legal a indivíduos da aquisição de algum bem ou serviço. Ela pode ser ampla — como a obrigação de que todas as pessoas contratem um seguro de saúde, como a existente na Alemanha — ou mais restrita, como a obrigatoriedade de contratação do seguro obrigatório para carros, DPVAT, para todas as pessoas que tenham um veículo.
  4. Community rating (preço comunitário): é a obrigação legal de que os preços de serviços de seguro devem ser definidos sem levar em consideração fatores de risco, apenas variáveis globais relacionadas a comunidade. Por exemplo, uma seguradora não pode definir o preço baseado em doenças pré-existentes — que estão diretamente relacionadas ao valor que custa para atender aquele paciente –, mas apenas idade, bairro em que a pessoa mora, sexo, e se o contratante é fumante ou não.

O atual cenário da saúde americana é resultado de uma mistura dessas quatro regulações de sistema, que foram implementadas a nível federal com o Obamacare de 2010. Anteriormente, o cenário de competição controlada já era muito comum a nível de empresas, de sindicatos, de associações civis — profissionais, de bairro, religiosas –, e mesmo em alguns estados — caso do Romneycare. Todavia, inexistiam os mandados a empregadores e individual, além da obrigatoriedade do preço comunitário.

Nenhuma dessas regulamentações seguiu a cartilha de quando é aceitável para o governo intervir na economia. Elas aumentaram a concentração de mercado na mão de poucos provedores, aumentaram os custos dos planos de saúde — e os preços aos consumidores finais — e reduziram a rede de coberturas dos pacientes, gerando um cenário agora em que todos os candidatos a presidência querem re-reformar o sistema de saúde. Além disso, elas não corrigiram os problemas que se acumulam no sistema de saúde desde a década de 40.

Com base nisso, como se organiza o sistema de saúde nos EUA?

Nos EUA existem 5 famílias de sistema de saúde diferentes, sendo que cada Estado apresentará suas particularidades. Então, pode-se estimar sem exagero que existem mais de 200 sistemas de saúde diferentes no país. Por simplicidade, os textos que falarão da temática analisarão apenas as grandes famílias, apresentando um ou outro pequeno exemplo de casos estaduais.

As famílias são:

  1. Medicaid: sistema misto de saúde pública estadual desenhado para atender pessoas pobres ou em situação de vulnerabilidade — deficientes, mulheres grávidas, pessoas que necessitam cuidado de longo prazo. O governo federal estabelece regulamentações mínimas, mas cabe aos estados expandirem-nas e complementar o financiamento do programa.
  2. Medicare: sistema misto de saúde pública desenhado para atender prioritariamente pessoas idosas. O governo federal paga pelo provimento de todos os serviços, mas Estados podem criar regulações relacionadas a planos de saúde complementares — supplemental health insurance.
  3. Veterans Affairs/Administration (VA): único sistema de saúde socializado dos EUA. O governo é dono dos hospitais e contrata médicos, enfermeiros e outros profissionais para oferecer cuidado médico aos militares aposentados e parte de suas famílias. Regulamentações em diferentes regiões podem levar a diferenças de provimento de serviços.
  4. Seguros de saúde privados: sistema misto que nem no Brasil. Governo federal e governos estaduais regulamentam como os planos de saúde devem ser estruturados, qual a cartilha de serviços ofertados e qual o aumento máximo de preço que pode existir.
  5. Sistemas de Mercado: serviços de saúde normalmente de finalidade estética ou de risco assumido como baixo. Governo atua basicamente como mediador de conflito quando do não provimento de algo contratado. É o sistema que tem apresentado maior redução de preços e melhoria da qualidade de serviços apresentada a médio e longo prazos.

O Obamacare de 2010 promoveu significantes alterações no Medicaid, Medicare e nos sistemas de seguro de saúde privados, além de criar novos impostos para os serviços ofertados em mecanismos de mercado. Entretanto, não modificou a organização da VA. Ele também não resolveu a doença que levou aos sintomas enxergados durante os anos 2000 — várias pessoas sem seguro saúde, alguns pacientes indo a falência para pagar tratamentos médicos –, apenas criou um novo sistema de incentivos perversos que vem aumentando os preços dos planos de saúde e fazendo com que as famílias tenham que desembolsar maiores fatias de seus orçamentos em gastos de saúde que elas não necessariamente queriam contratar. Todavia, uma avaliação melhor sobre isso é o tema para o terceiro texto dessa série. No próximo, vou explicar sobre alguns eventos históricos que levaram ao desenvolvimento desse emaranhado de serviços de saúde.

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