Em dois textos anteriores, eu comentei sobre a existência do sistema de saúde público dos EUA e sobre o seu funcionamento. Recentemente, eu também ministrei uma palestra pelo Instituto Liberal do Centro-Oeste sobre o sistema de saúde americano — tanto público como privado –, que estará disponível para visualização on-line em breve. O objetivo desse texto é dar continuidade às idéias explicadas anteriormente, apresentando algumas informações em maiores detalhes.
Antes de começar qualquer texto explicando a evolução dos sistemas de saúde na América, é importante relembrar algumas definições que já apresentadas em artigos anteriores — sem elas, é impossível navegar pelo mar de mentiras propagado pela mídia brasileira e americana sobre o assunto. Primeiramente, vamos relembrar os tipos de sistema de saúde:
Em praticamente todos os países do mundo, nós vemos a existência de mais de um sistema de saúde. Nos EUA o cenário não é diferente. Como falado anteriormente, existem sim um sistema de saúde pública que atende na casa de 120 milhões de pessoas, mas ele não é socializado como o SUS. Isso gera grande parte da confusão que vemos em reportagens e debates políticos. Esse fato também facilita a propagação de mentiras sobre a realidade americana, pois muitas pessoas acham que a única forma de o governo fornecer serviços de saúde é sendo dono de hospitais e contratante de médicos, enfermeiros, dentistas, etc.
Vale a pena ressaltar que os sistemas de saúde pública americanos são mais ou menos eficientes conforme a unidade da federação analisada e o nível de regulamentações aos quais eles estão submetidos, mas eles estão lá. Às vezes o Medicaid de Indiana é bem melhor do que o da Califórnia e, caso um jornalista ou documentarista só olhe um dos estados, ele estará dando uma visão incompleta do que acontece. Além disso, mesmo no pior caso, os diversos sistemas públicos americanos ainda são tão eficientes — a nível populacional — quanto os sistemas socializados da Europa ou o sistema misto do Canadá.
Outro fator importante a se analisar é que, em qualquer análise, as diferenças populacionais devem ser levadas em consideração. Por exemplo, um país que tem mais fumantes, tem mais chance de ter mais mortes por causa de tumores associados ao cigarro. Caso as mortes estejam em valores parecidos com outros países com menos fumantes, isso é uma demonstração de que o serviço de saúde está funcionando. O mesmo vale com questões relacionadas a dieta da população, com hábitos de exercício, com doenças infecto-contagiosas, etc. No caso da América, problemas graves como o sedentarismo e a obesidade afetam a incidência de doenças como aquelas que atingem o sistema cardiovascular, diabetes, alguns tipos de câncer e isso levaria, por si só, a uma sobre-representação dessas condições nos cortes populacionais, sem que isso indique um problema do sistema de saúde. Como os dados de mortalidade dos pacientes doentes são similares a ou melhores que outros países da OCDE, vemos que o sistema tem funcionado.
Além de analisar a questão de quais tipos de sistema existem, devemos lembrar que a existência de entidades reguladoras — como Anvisa e ANS — altera a dinâmica do mercado da saúde — seja o mercado de um sistema socializado, seja de um “sistema puramente de livre mercado”. Essas agências são constante alvo de captura regulatória e servem para favorecer aliados políticos, são exemplos de problema do conhecimento — como descrito por Hayek –, além de, em geral, diminuírem o bem estar econômico dos agentes de mercado seja dos que demandam serviços e bens, seja dos que os oferecem.
Existem tipos de regulamentação que alteram completamente a dinâmica de um mercado, não estando relacionados bens e produtos específicos. Essas regulamentações, que serão chamadas de regulações de sistema, dizem como o mercado como um todo deve funcionar, definem o padrão de competição dos atores, obrigam pessoas a contratar serviços que elas voluntariamente não desejariam, alocam recursos de forma ineficiente, entre outros aspectos. Para entendermos o sistema de saúde dos EUA é preciso analisar quatro dessas formas de regulação:
O atual cenário da saúde americana é resultado de uma mistura dessas quatro regulações de sistema, que foram implementadas a nível federal com o Obamacare de 2010. Anteriormente, o cenário de competição controlada já era muito comum a nível de empresas, de sindicatos, de associações civis — profissionais, de bairro, religiosas –, e mesmo em alguns estados — caso do Romneycare. Todavia, inexistiam os mandados a empregadores e individual, além da obrigatoriedade do preço comunitário.
Nenhuma dessas regulamentações seguiu a cartilha de quando é aceitável para o governo intervir na economia. Elas aumentaram a concentração de mercado na mão de poucos provedores, aumentaram os custos dos planos de saúde — e os preços aos consumidores finais — e reduziram a rede de coberturas dos pacientes, gerando um cenário agora em que todos os candidatos a presidência querem re-reformar o sistema de saúde. Além disso, elas não corrigiram os problemas que se acumulam no sistema de saúde desde a década de 40.
Com base nisso, como se organiza o sistema de saúde nos EUA?
Nos EUA existem 5 famílias de sistema de saúde diferentes, sendo que cada Estado apresentará suas particularidades. Então, pode-se estimar sem exagero que existem mais de 200 sistemas de saúde diferentes no país. Por simplicidade, os textos que falarão da temática analisarão apenas as grandes famílias, apresentando um ou outro pequeno exemplo de casos estaduais.
As famílias são:
O Obamacare de 2010 promoveu significantes alterações no Medicaid, Medicare e nos sistemas de seguro de saúde privados, além de criar novos impostos para os serviços ofertados em mecanismos de mercado. Entretanto, não modificou a organização da VA. Ele também não resolveu a doença que levou aos sintomas enxergados durante os anos 2000 — várias pessoas sem seguro saúde, alguns pacientes indo a falência para pagar tratamentos médicos –, apenas criou um novo sistema de incentivos perversos que vem aumentando os preços dos planos de saúde e fazendo com que as famílias tenham que desembolsar maiores fatias de seus orçamentos em gastos de saúde que elas não necessariamente queriam contratar. Todavia, uma avaliação melhor sobre isso é o tema para o terceiro texto dessa série. No próximo, vou explicar sobre alguns eventos históricos que levaram ao desenvolvimento desse emaranhado de serviços de saúde.