Em um panorama no qual 9 dentre 10 estudantes da rede pública chegam ao ensino médio sem saber o conteúdo básico, muitos pais têm optado por escolarizar seus filhos em casa, prática conhecida como “homeschooling“. A educação domiciliar é muito comum nos Estados Unidos, onde cerca de quatro milhões de crianças são ensinadas desta forma, e é permitido legalmente em outros 62 países. Todavia, no Brasil, apesar da metodologia de ensino ser adotada por cerca de 2 mil famílias, a prática ainda é pouco conhecida e a legislação sobre é nebulosa: nosso ordenamento jurídico é simplesmente incompatível com a educação domiciliar, com fundamentos já derrubados por estudos científicos há décadas.

Mas, inicialmente, por que adotar a educação domiciliar?

Isabel Lyman apontou em ‘The Homeschooling Revolution’ que os principais motivos são a insatisfação com o ambiente predominante nas escolas, insegurança nos perímetros escolares, o baixo nível técnico das escolas, questões religiosas, a crença na superioridade acadêmica do ensino doméstico e a necessidade de se construir laços familiares mais robustos, além de eventuais divergências ideológicas.

Vale ressaltar que não há uma única metodologia. Em países onde a educação domiciliar é comum, há organizações especializadas no assunto, que oferecem serviços para facilitar a prática. Por exemplo: as famílias podem optar por comprar um currículo já montado (como neste link e neste), ou, ainda, escolher matricular as crianças em instituições que oferecem educação à distância, como oferece essa empresa americana.

Além disso, é possível ainda a contratação de tutores que ensinam habilidades específicas, como uma língua estrangeira, um instrumento musical, ou uma aula de ciências. Nos Estados Unidos, é usual crianças participarem de excursões e de cooperativas de aprendizado com outras crianças homeschoolers, ou até mesmo fazerem algumas matérias em escolas locais.

Fato importante de evidenciar é o receio em relação a crianças adeptas ao homeschooling se tornarem adultos misantropos, tendo dificuldades de se relacionar com outras pessoas. No entanto, há mais de 20 anos Larry Shyers demonstrou que isso não era verdade. Sua tese de doutorado concluiu que o contato com adultos, e não o contato com outras crianças, é o mais importante no desenvolvimento de habilidades sociais em crianças (o que não significa que isso deva ser abandonado, como já mencionado acima). Mais: as crianças que praticavam homeschooling tinham menos problemas comportamentais [1].

Já Thomas Smedley sustenta que homeschoolers possuem habilidades de socialização superiores, e sua pesquisa sustenta essa conclusão. Ele comparou crianças que estudavam em casa com crianças que estudavam em escolas públicas, a partir do Vineyard Adaptive Behavior Scales, que analisa habilidades de comunicação, socialização e habilidades da vida diária. O resultado foi um aproveitamento quase três vezes superior das crianças educadas em seu próprio domicílio.

Nos Estados Unidos, o homeschooling é permitido em todos os seus estados, porém, alguns deles possuem legislações mais flexíveis, enquanto outros exigem que os pais informem as autoridades responsáveis, a fim de obter aprovação antes do início das atividades, analisando grades curriculares, por exemplo.

Entrementes, no Brasil a prática não é regulamentada, o que não significa que ela é vetada, embora existam muitos casos de pais condenados por educarem seus filhos em casa. Em uma pesquisa de 30 segundos Google encontramos vários casos, como aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.

As condenações foram fundamentadas com base 1) no artigo 205 da Constituição Federal, que determina que a educação é um direito de todos e dever do Estado e da família;  2) no artigo 246 do Código Penal, que tipifica o crime de “abandono intelectual”; bem como 3) no artigo 55 do Estatuto da Criança e Adolescente, que determina a obrigação de matricular os filhos na rede regular de ensino.

Os juízes brasileiros entendem que não existe instrução primária fora do ambiente escolar, uma interpretação demasiadamente restritiva e insubsistente. Além disso, muitos não se sentem seguros em permitirem a educação domiciliar, por desconhecimento. Porém, isso pode mudar em breve: atualmente, há um recurso extraordinário (RE 888.815) em tramitação no STF, cujo caráter constitucional já foi reconhecido, bem como sua repercussão geral.

Não se defende aqui que todas as crianças devam ser educadas em casa: cada uma tem suas peculiaridades e os pais devem procurar as melhores ferramentas para a aprendizagem de seus filhos, tendo a opção de, entre elas, haver a educação domiciliar. O que não podemos admitir é um ordenamento jurídico que coíbe uma prática com base em mitos e preconceitos, tanto de legisladores quanto por parte de magistrados.

[1] Shyers, Larry E. (1992). A comparison of social adjustment between home and traditionally schooled students.

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