Pouco antes da Copa de 2014, o ex-técnico Carlos Alberto Parreira afirmou que a “CBF é o Brasil que deu certo”. Ele tem razão, mas não do jeito que imagina. A CBF, mais especificamente a forma como o futebol brasileiro está organizado, é talvez uma das grandes alegorias de como se constitui a sociedade brasileira e permite úteis comparações com outros países cujo sucesso econômico, político ou institucional nós almejamos igualar.

O futebol inglês tem conseguido feitos impressionantes na atual temporada. É com surpresa e assombro que um pequeno time do interior – o Leicester City – esteja dominando o campeonato nacional, desbancando times com orçamento muito superior, como o Manchester City, propriedade da família real de Abu Dhabi, e o Chelsea, do magnata russo e amigo íntimo de Vladimir Putin, Roman Abramovich.

Muito disso se deve a impressionante atuação de Jamie Vardy e Riyad Mahrez e a tática baseada em rápidos contra ataques desenvolvida por Claudio Ranieri. Mas se deve, principalmente, à capacidade financeira que mesmo um time menor consegue alcançar na Inglaterra. O Palmeiras teve em 2015 a maior folha salarial do futebol brasileiro gastando R$ 11,5 milhões por mês, ou R$ 138 milhões de reais em 12 meses. No câmbio atual, este é o valor que paga o clube mais pobre da primeira divisão inglesa. O líder Leicester gasta praticamente o dobro, enquanto a folha salarial do Chelsea é igual a 8,6 vezes a do Palmeiras.

Essa capacidade de investimento dos times pequenos da Inglaterra vem, em grande medida, do modo como são distribuídos os direitos televisivos do campeonato: 50% do contrato de TV é distribuído igualmente entre os 20 times, outros 25% de acordo com o mérito desportivo (a classificação no campeonato anterior) e os últimos 25% levam em conta a audiência de cada time nas transmissões. Este sistema deve ficar ainda mais igualitário nas próximas temporadas. Em breve, o time que ficar na última posição do Campeonato Inglês conseguirá arrecadar mais dinheiro somente com o contrato de TV do que quaisquer times brasileiros conseguem arrecadar com todas as suas receitas.

Essa preocupação com o campeonato como um todo não está limitada ao futebol inglês. Assim acontece também em todas as ligas americanas como a NBA e a NFL. Neles, não apenas a distribuição de recursos, mas também a contratação de jogadores é fortemente restrita para que todos os times, pequenos e grandes, consigam jogar de maneira mais igual. Há mais uma coincidência entre Premier League, NFL e NBA: são organizações completamente privadas e geridas pelos próprios times.

A FA (a “CBF inglesa”) não organiza o campeonato inglês desde 1992. Nos EUA, a liga é uma empresa privada que tem os times como sócios. Assim, forma-se um Conselho de Administração que escolhe os diretores, mais ou menos como em qualquer grande empresa com acionistas. Não só isso, essa união privada já permitiu fortes ações contra racismo e diminuição no preço de ingressos. No Brasil, infelizmente, acontece o contrário.

A CBF e a forma de organização do futebol brasileiro são ótimas alegorias sobre o capitalismo de compadres que tanto nos caracteriza. O sistema sob o qual o futebol brasileiro está fundado guarda semelhanças com o Estado brasileiro. O grande, complexo e obscuro corpo burocrático que sustenta a CBF tem sua base em federações estaduais dominadas pelos mesmos caciques há décadas. A semelhança com os políticos brasileiros não é mera coincidência, dado que muitos presidente de federação atuam como caciques também na política.

Desde que a CBF assumiu o lugar da antiga CBD em 1978, a instituição teve seis presidentes, um a mais que o número de papas (um cargo vitalício) no mesmo período. Apenas Ricardo Teixeira ficou 23 anos no poder. Nas federações a situação é ainda mais dramática, como se pode ver em Roraima, onde o mesmo presidente de federação está no poder há 40 anos. Soma-se a isso um sistema eleitoral no qual os atores realmente relevantes – torcedores, clubes e jogadores – tem a sua participação sub-representada em detrimento das obscuras federações estaduais, gerando um ciclo perverso de perpetuação do poder.

Em um famoso livro recente, os economistas Daron Acemoglu e James Robinson tentaram explicar por que as nações fracassam. A explicação gira em torno das instituições extrativas, que favorecem a extração da riqueza por parte de uma elite, ao invés da criação de riqueza não planejada.

O mesmo grupo empresarial possui o monopólio da distribuição do futebol brasileiro na tevê aberta há quase 40 anos, e atualmente controla todas as suas formas de distribuição. Por mais que a competência técnica da Globo seja excepcional (e é, por mais que os detratores frequentemente ignorem isso), não é possível explicar seu domínio sem falar sobre os polpudos benefícios estatais. Com isso, os times se sentem ameaçados e recuam a propostas economicamente melhores como atualmente está propondo a Rede de TV Esporte Interativo. Em todas as frentes do futebol, as elites extrativas lá estão.

Esta realidade transborda para além dos limites econômicos levando a diversas injustiças como a repressão e a censura ao direito a manifestação da torcida do Corinthians recentemente ou nas notórias polêmicas envolvendo o STJD, com suspeitas de favorecimento a clubes maiores.

O futebol (e o Brasil) precisa superar as amarras que o seguram. Ao contrário do que já defendeu Juca Kfouri, o futebol precisar ser privatizado e seu controle tomado por quem de fato faz o esporte. Isso significa a criação de uma liga (torcemos que a primeira liga se torne isso), uma vertiginosa diminuição do poder da CBF e das demais federações e fortalecimento dos times que os permitam não serem reféns de Rubens Lopes e Famílias Marinhos da vida. Só assim, poderemos nos vangloriar em ver no nosso futebol uma parte do Brasil que “deu certo”.

Compartilhar