Por mais que a Constituição Brasileira garanta a cobertura universal e gratuita de saúde a todos os brasileiros e por mais que o seu político preferido prometa mais e mais leis destinando verba para isso, não são palavras escritas em pedaços de papel nem proferidas em um discurso que vão garantir que pessoas tenham acesso efetivo a cuidados médicos — por mais bonitas ou simbólicas que elas sejam.

Cobertura e acesso a saúde são duas coisas bem diferentes e devem ser sempre tratadas como tal. Entretanto, a situação mais comum em qualquer debate que se faça sobre o sistema de saúde é misturar esses dois conceitos e dizer que a falta de acesso é devido a erros de cobertura — como é o caso de praticamente todo o debate de saúde na América.

Eu já abordei por alto essa diferença anteriormente no contexto do sistema de saúde americano. Agora, com esse texto, pretendo mostrar como o sistema de saúde brasileiro garantiu mais acesso para as pessoas não por causa da Constituição de 88, nem pelo advento do SUS, mas sim por mais oferta de bens e serviços que só foram possíveis devido a mecanismos de mercado tão vilipendiados pela mídia e pelos políticos. Mas antes disso, vamos definir cobertura e acesso.

O que é cobertura de saúde?

O conceito de cobertura é relativamente simples de ser explicado, ele é o conjunto de bens e serviços definidos num contrato ou numa lei aos quais uma pessoa em teoria tem acesso e que serão pagos em caso de uso ou que já estão parcialmente pagos através das mensalidades de um plano de saúde ou dos impostos coletados pelo Estado. Por exemplo: se seu plano de saúde fala que você tem cobertura de atendimento médico realizado no Hospital do seu bairro, isso significa que você pode tentar ser atendido lá e caso consiga, o serviço será pago.

Isso acontece no contexto do SUS, em que uma pessoa tem a cobertura de atendimento para uma ampla variedade de procedimentos de saúde, além de centenas de medicamentos. Ela tem acesso teórico a alguns hospitais relativamente bons pelo Brasil, mas na prática o que se vê são pessoas morrendo na fila por falta de médicos, de leitos ou mesmo de soro antiofídicoque apesar de ser “gratuito” pelo SUS, custa muito caro para a família que vê seu ente querido morrer pelo Estado não cumprir suas promessas.

Dessa forma, um aumento de cobertura pode significar relativamente nada na melhoria do acesso efetivo ao cuidado médico.

O que é acesso a saúde?

O acesso a saúde é a ação efetiva de se receber cuidados médicos. Quando uma pessoa vai a um hospital e é atendida por um profissional de saúde, essa pessoa teve acesso aos cuidados que precisava ou pelo menos àqueles que estavam disponíveis. O mesmo se dá quando uma pessoa vai a uma farmácia e consegue encontrar os medicamentos que ela precisa.

O acesso não é determinado pela cobertura, apesar de em muitos casos serem próximos. Um paciente que sofreu um acidente grave perto de um hospital particular como o Sírio Libanês terá acesso aos cuidados médicos de lá, por mais que seu plano de saúde e o SUS não cubram em teoria o atendimento — o SUS será posteriormente acionado para pagar as despesas caso o paciente não o faça. De forma análoga, um paciente que está na fila do Hospital das Clínicas da USP pode morrer esperando um leito ou um médico, por mais que ele tenha a cobertura àquele serviço garantida por leis federais e estaduais.

Para garantir o aumento do acesso ao cuidado de saúde, não é necessário um pedaço de papel dizendo que A vai pagar pelo tratamento médico de B. Mas é necessária a ampliação da rede de atendimento e do número de profissionais ou bens disponíveis em um determinado momento. Aqui entra uma crítica justa feita por muitos médicos brasileiros ao programa Mais Médicos: de pouco adianta só contratar profissionais de saúde se eles não vão ter equipamentos — mesmo os mais simples como uma maca — para realizar o atendimento. Podemos aumentar parte do acesso com mais profissionais disponíveis, mas mesmo assim não garantir o cuidado por falta de outros recursos às vezes tão importantes quanto.

Equipamentos médicos aumentam a “produtividade” do sistema, agilizando diagnósticos complicados e melhorando os resultados dos tratamentos. Por exemplo: quando uma nova tecnologia que auxilia diagnósticos é adotada, ela libera médicos para fazerem outros exames ou atenderem mais pacientes, vide o caso dos Raios-X que permitem que médicos consigam avaliar complicações respiratórias e diferenciar se é uma tuberculose ou uma gripe, distinguir entre fraturas de ossos ou problemas musculares, entre outros. Só isso seria suficiente para tornar uma equipe de saúde mais capaz de atender a demanda pelos seus serviços visto que ela pode ofertar mais consultas num mesmo intervalo de tempo, por mais que não surgissem outras novas equipes. Mais consultas significam mais oferta de serviço de saúde o que, para uma demanda que não necessariamente cresce muito, significa preços mais baixos seja monetários ou em tempo.

O Estado pagar a conta não garante que as pessoas mais pobres terão acesso ao cuidado médico, como a gente vê o tempo todo no SUS.

Quando o governo assumiu o pagamento de serviços de saúde, ele apenas transferiu os custos daqueles que efetivamente tinham acesso aos serviços de saúde para a população como um todo. Nessa transferência, foi possível que algumas pessoas passassem a ter acesso a cuidados médicos pois não precisariam pagar os custos dos mesmos — outros arcavam com a conta. Mas como o SUS por si só não criou novos médicos, o que aconteceu foi que o acesso foi retirado de grupos de pessoas, muitas vezes até mais doentes, e transferido para outros.

Isso pode levar ao discurso bonitinho de que a fulaninha pobre agora tem acesso ao médico para realizar o seu pré-natal ou fazer o exame de rotina. Mas a gente não vê que muitas vezes outra pessoa pobre deixou de ter acesso ao mesmo serviço em troca. Bastiat já falava que há aquelas consequências que se vê e aquelas que não se vê. No caso dos sistemas de saúde, fica relativamente mais evidente isso devido a maiores regulamentações que levam a um jogo quase de soma zero principalmente no quesito mão de obra.

Fatores que levaram a melhoria do acesso ao serviço de saúde no Brasil

Temporalmente correlacionados a transferência de acesso ao serviço gerada pela criação do SUS, nós tivemos cinco fenômenos diretamente relacionados ao aumento da oferta em saúde e que efetivamente foram responsáveis por aumentar o acesso, mas que não tem no pagamento pelo governo a sua origem.

O Brasil enriqueceu muito desde a década de 70 — como se vê na figura abaixo — e isso permitiu que muitas pessoas pudessem dedicar 6 anos da sua vida quase que em tempo integral para estudar medicina, ou 4 a 5 anos para quaisquer outras especialidades médicas (enfermagem, odontologia, farmácia, psicologia, etc). Esses novos profissionais de saúde que foram entrando no mercado aumentaram a oferta de mão de obra, barateando os custos e facilitando o acesso para todo mundo. Com o advento do Plano Real e o fim da hiper-inflação, mais e mais pessoas tiveram a possibilidade de se planejar financeiramente, algo que, associado ao aumento das vagas em cursos de nível superior e à maior escolarização da população em nível básico, permitiu que muitas pessoas investissem seu tempo em se formar médicas, enfermeiras, psicólogas, dentistas, etc.

Evolução do PIB per capita brasileiro de 1970 a 2010. (fonte: Maddison Project)

Associado ao enriquecimento da nação e a estabilidade econômica, tivemos um aumento significativo da oferta de vagas em cursos de medicina. Até 1994, existiam 83 cursos superiores de ciências médicas no Brasil. De 1995 a 2010 foram criados mais 96, sendo 67 desses em instituições privadas, como nos mostra a figura abaixo. Os ingressantes passaram de 8049 para 18568, em apenas 16 anos, significando mais oferta de serviços de saúde. Os dados para outras especialidades nas áreas de saúde seguem padrão similar de expansão, sendo que o crescimento foi ainda maior devido a menores regulamentações do Ministério da Educação e dos Conselhos Profissionais, que na verdade são controles de mercado exercidas por grupos de interesse. Por exemplo, no caso dos cursos de enfermagem, a oferta cresceu de 207 programas para 826, considerando apenas a década 2001-2011! Esse segundo fenômeno por si só já seria suficiente para aumentar significativamente o acesso da população aos serviços de saúde, mesmo com a alegada péssima distribuição dos profissionais ao redor do país. Todavia, a evolução da saúde brasileira não para por aí.

Cursos de Medicina Criados no Brasil por intervalo temporal (fonte: USP)

Cursos de Medicina Criados no Brasil por intervalo temporal (fonte: USP)

A próxima figura mostra a evolução do número de médicos formados por ano no Brasil. Em 2010 apenas, foram formados mais médicos do que o total oficial de cubanos contratados pelo programa Mais Médicos. O aumento da razão médicos/1000 habitantes no Brasil tem sido constante desde a década de 1980 justamente pelo crescimento do número de profissionais formados.

Novos médicos entrando no mercado por ano a partir de 1991. (Fonte: USP)

O terceiro fenômeno que aumentou consideravelmente o acesso a serviços de saúde foi o advento de novas tecnologias médicas tanto para diagnóstico, como para tratamento. Desde a década de 50 a medicina experimenta uma evolução no nível de atendimento nunca antes imaginada. Ferramentas como o Raio-X (desenvolvido originalmente no fim do Século XIX, mas popularizado nos anos 70), tomografias computadorizadas, MRIs, aparelhos de ultrassom, testes sanguíneos mais precisos, dispositivos de aferição de pressão e glicemia que cabem na palma da mão, entre outros permitiram que médicos e enfermeiros melhorassem seu uso de tempo e atendessem mais pacientes em um mesmo intervalo. Junto a esses elementos diagnósticos, nós vimos também o advento de novos tratamentos como antibióticos de amplo espectro, diferentes remédios para controle de pressão, antiistamínicos, antirretrovirais, vacinas e soros que permitiram que problemas antes responsáveis por dizimar populações inteiras agora fossem controláveis, quando não curáveis. O aumento de oferta de terapias permitiu que mais e mais pessoas tivessem acesso a cuidados médicos de que precisavam e isso melhorou significativamente a sua vida. Um exemplo de como isso funciona a nível global é ver que enquanto a epidemia de Gripe Espanhola matou entre 50 e 100 milhões de pessoas entre 1918 e 1920, a epidemia de Gripe Suína nos últimos anos fez menos de 3000 vítimas.

O quarto fator que aumentou a oferta de serviço de saúde foi a criação de sistemas paralelos de saúde, com modelos de pagamento diferenciados, o que é parcialmente um efeito do SUS. Com o advento do  sistema de saúde público que apresenta um pagamento relativamente fixo para médicos e outros servidores, independentemente do número de pacientes atendidos, vários profissionais passaram a trabalhar mais horas durante a semana: trabalham em um hospital público para garantir o salário base — pago por hora e não por produtividade –, e em clínicas ou hospitais particulares, onde complementam a sua renda. Um profissional que antes só tinha um campo de trabalho com salário variável passou a ter dois ou três, e com isso mais pacientes passaram a ter acesso a seus serviços. Isso não é uma coisa que surgiu porque o governo decidiu pagar a conta, mas sim por causa de um novo modelo de negócios que gerou incentivos diferentes para os profissionais. Se hospitais privados oferecessem o mesmo sistema de compensação, muito provavelmente o efeito seria o mesmo.

Por fim, há um quinto fator que está amplamente associado ao aumento do acesso a qualquer tipo de serviço por parte da população: a urbanização do Brasil — vide a figura abaixo. Cidades encurtam as distâncias entre provedores de serviços e aqueles que os demandam, além de facilitar a difusão de boas práticas de saúde coletiva principalmente relacionadas prevenção de doenças — como imunização. Junta-se a isso os fatos de que as principais escolas de medicina se encontram em grandes áreas urbanas, de que é muito mais fácil empreender em medicina em cidades — devido a proximidade de outros profissionais e a facilidade de acesso a bens e serviços complementares –, e já conseguimos justificar a concentração de profissionais de saúde nos centros urbanos ao invés de se deslocarem para o interior.

Em cidades o acesso aos serviços de saúde e mesmo a serviço de saneamento é bem maior e mais fácil, o que permite que a população tenha em média uma melhor qualidade de vida. Com a mudança das pessoas do campo para a cidade, o deslocamento que era necessário para se conseguir uma consulta médica diminuiu, além disso a facilidade de procurar profissionais especializados e ter acesso a tratamentos como fármacos, órteses e próteses aumentou. O acesso urbano a saúde então é maior, mesmo que no pedaço de papel em que se encontra a lei não exista nada que privilegie essas localidades — na verdade, a depender do Ministério da Saúde, o objetivo é dificultar o acesso urbano para se subsidiar o acesso rural. Olhando só a razão médicos/1000 habitantes, uma Unidade da Federação primordialmente urbana (96% da população vive em cidades) como o DF apresenta 4,09 médicos/1000 habitantes, enquanto o Maranhão com 30% da sua população em zonas rurais apresenta uma razão de 0,71 médicos/1000 habitantes — sendo que a capital São Luís fica com 2,88 médicos/1000 habitantes.

Evolução da população brasileira e sua composição (fonte: Banco Mundial)

Evolução da população brasileira e sua composição (fonte: Banco Mundial)

É necessário lembrar que assim como Brasília apresenta mais advogados do que a média nacional, São Paulo mais engenheiros e Rio de Janeiro mais atores e produtores culturais, não é razoável achar que os médicos deveriam estar igualmente distribuídos pelo território nacional. Deve-se sim ter um sistema que permita o acesso mesmo remoto aos seus serviços, mas não forçar a redistribuição por causa de uma inspiração iluminada de um burocrata. Por fim, vale a pena ressaltar que ninguém sabe ao certo quantos médicos são necessários por mil habitantes para atender a demanda no Brasil, apesar de todo políticos dizer que o número existente no país é baixo. Nem a suposta recomendação da OMS é baseada em algum modelo de atendimento ótimo, mas sim em valores que existem ao redor do mundo que podem ou não ser razoáveis para a realidade brasileira — e podem até ser altos/baixos para os países em que eles foram mapeados. Mas é importante ver que a gente tem sim uma demanda reprimida por serviços de saúde e que o único jeito de atendê-la é com mais oferta e não com mais regulamentação vindo de Brasília e passando pelo lobby de profissionais que não querem perder sua boquinha.

Ao invés de reclamar dos médicos não quererem ir para o interior, devemos sim reclamar do MEC controlando o número de vagas e as localidades das faculdades de medicina, da Anvisa que praticamente impede a importação de qualquer equipamento moderno de saúde — o que faria que alguns equipamentos ainda bons, mas mais antigos fossem levados para áreas carentes do sistema de saúde, algo análogo a filtragem urbana –, dos CRMs e do CFM que querem mais e mais restrições para estrangeiros e brasileiros exercerem a profissão, dos médicos que duvidam que pacientes podem ser mais responsáveis pela sua própria saúde, dos políticos que mentem descaradamente porque a população demanda coisas impossíveis e de nós mesmos por querer que um processo que é naturalmente demorado ocorra da noite para o dia.

Infelizmente é impossível conseguir em curto tempo que todos os brasileiros tenham acesso ao serviços de saúde. Não vai ser o SUS que vai consegui-lo, muito menos programas como o Mais Médicos — que, apesar de todos os problemas, serve para aumentar mesmo que pouco a oferta de profissionais –, ou portarias do Ministério da Saúde e palavras escritas na nossa Constituição. O que vai permitir que as pessoas tenham acesso ao serviço de saúde é o crescimento do número de profissionais disponíveis, o aumento do número de hospitais, a melhoria da condição econômica do país e a inovação tecnológica. Todos esses fatores já mostraram que podem melhorar o cenário e tem tudo para continuar fazendo que a população brasileira tenha uma melhor condição de vida.

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