Por Wanderson Martins

A imagem acima, tirada de um livro didático de História para ensino fundamental escrito por Mário Schmidt, tem circulado na internet como evidência da já famosa doutrinação de esquerda nas escolas do ciclo básico brasileiro. Mais de 20 milhões de alunos da rede pública viram essa imagem ainda na escola. Na época, este que vos fala acreditava piamente que finalmente tínhamos uma visão histórica do Brasil que não fosse “de direita”, um estudo de história apenas voltado para a memorização de fatos e de datas. Finalmente tínhamos um livro de história crítica!

Hoje, com um pouco mais de maturidade, percebo que a dicotomia capitalismo-socialismo não é tão maniqueísta quanto coloca Schmidt, ou linhas contrárias mas igualmente estereotipadoras, que estão fora do programa de ensino de História no Brasil. Obviamente, entre os maniqueísmos opostos, existem várias linhas de pensamento a respeito dos limites do capitalismo na regulação das relações sociais.

Com a ascensão e politização da chamada “nova direita”, alguns setores da sociedade começaram a se fazer ouvidos no combate à suposta doutrinação anticapitalista nas escolas. De fato, alguma doutrinação existe e é um absurdo ter contato apenas com a visão schmidtiana no ensino de História. A principal atitude nesse sentido foi o projeto Escola sem Partido, de autoria do Deputado Federal Izalci Lucas Ferreira, do PSDB-DF. Abaixo, destacamos um trecho do projeto de lei.

“Art. 2º. A educação nacional atenderá aos seguintes princípios:
I – neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado;
II – pluralismo de ideias no ambiente acadêmico; […]
V – reconhecimento da vulnerabilidade do educando como parte mais fraca na relação de aprendizado;
VI – educação e informação do estudante quanto aos direitos compreendidos em sua liberdade de consciência e de crença;
VII – direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções.”

Abordando superficialmente o debate de qual deve ser o papel da escola na formação do indivíduo como cidadão, cabe perguntar: é papel da escola ensinar princípios morais para os alunos? Qual deve ser a divisão de papéis entre a escola e os pais? O que pode ser entendido como doutrinação? Segundo esse PL, ensinar, por exemplo, que as experiências totalitárias do século XX foram ruins para a humanidade pode ser interpretado como uma afronta aos direitos de pais simpáticos a doutrinas totalitárias?

Basicamente, os incisos desse artigo do PL pretendem fazer com que os professores sejam “isentos” na hora de, por exemplo, explicar fatos históricos. Entretanto, “isenção” é algo extremamente difícil de definir. Há quem diga, ainda, que é impossível haver imparcialidade, principalmente no ensino de história – todo discurso social é informado por um contexto ideológico. Especificamente, o PL não define “doutrinação”, deixando a questão aberta às interpretações mais variadas. O artigo 3º aprofunda esses questionamentos.

“Art. 3º. São vedadas, em sala de aula, a prática de doutrinação política e ideológica bem como a veiculação de conteúdos ou a realização de atividades que possam estar em conflito com as convicções religiosas ou morais dos pais ou responsáveis pelos estudantes.”

Este parágrafo, conceitualmente vago, pode ser interpretado de várias formas. Por exemplo, um professor pode vir a ser processado por pais criacionistas caso ele comente a teoria evolucionista de Darwin em sala de aula.

Outro exemplo: como tratar da questão dos anos de governo dos militares no Brasil? Alguns livros de história, usado nos colégios militares, tratam o fato como uma contrarrevolução, seguido por um período democrático. Já a maioria dos outros livros, usados pela maioria dos estudantes brasileiros, considera o episódio um golpe de Estado, seguido por 20 anos de ditadura. Facilmente podemos encontrar por aí pessoas com filhos que consideram uma das abordagens como “doutrinação”. Como definir quem está certo?

Pode-se levantar o argumento, em linha com o projeto de lei, de que pais criacionistas devem poder escolher uma educação para seus filhos que leve em conta suas convicções religiosas, ainda que à revelia da ciência. De forma similar, é cruel que pais que, por exemplo, resistiram à repressão da ditadura militar sejam obrigados a matricular seus filhos numa instituição que ensine que o golpe de 64 foi uma revolução legítima.

A questão aqui vai muito além da imparcialidade na sala de aula, que é um conceito, na prática, inoperante. Por um lado, é irreal exigir isenção política e moral nas escolas. Por outro, é justo que os pais tenham diversidade de escolhas ao matricularem seus filhos, mas as regras de matrícula em escolas públicas e o currículo centralizado tornam esse ideal inviável. Assim, a questão levantada pelo PL da Escola sem Partido sucinta uma velha solução desenhada e popularizada por Milton Friedman: vouchers escolares.

De maneira simplificada, o sistema de vouchers seria um Prouni para escolas particulares do ciclo básico. O governo subsidiaria a educação das crianças com um valor relativo à renda domiciliar e a família pode escolher em qual escola a criança vai estudar. Dessa forma, as pessoas têm liberdade de escolha, podendo evitar formas de ensino incompatíveis com seus valores pessoais. O currículo não é determinado centralmente por “especialistas” e burocratas. Pais preocupados com a doutrinação de esquerda ou de direita poderão escolher uma escola com tradição católica, militar ou de linha marxista, escapando do que consideram conhecimento doutrinário.

Mais uma vez, a solução para o problema da doutrinação não passa por amarras legais à liberdade de expressão e à liberdade acadêmica. Na verdade, a solução passa por reforçar não só a livre docência, mas também por permitir que os pais sejam livres para escolher a educação de seus filhos. A escola pública como temos hoje, se não é aberta à diversidade de pensamento, acaba por limitar os mais pobres a uma educação por demais enviesada, sem alternativas. Um sistema de educação aberto e plural, sem narrativas hegemônicas vieses arraigados, requer a descentralização do ensino. Apenas assim poderá a imposição de cima para baixo ser substituída, do lado dos pais, pela livre escolha e, do lado dos professores, pela liberdade de ofício.

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