Por Beatriz Martins
Frequentemente, dentro de movimentos sociais como o feminismo, estabelece-se uma relação obrigatória entre o capitalismo e as origens das opressões sofridas pelas mulheres. É bastante comum afirmar-se que o capitalismo alimenta-se das hierarquias de gênero e de cor, por exemplo. Empiricamente, esse tipo de afirmação parece se sustentar. Vivemos num mundo capitalista e ainda assim somos um grupo marginalizado. Ganhamos menos, e parece que os figurões para quem o capitalismo serve adoram isso de contratar trabalhadoras por um salário menor. O mesmo vale para negros, pessoas trans*. Tendo este quadro em mente, não é difícil entender o porquê de os movimentos sociais serem tão fortemente associados à esquerda socialista na atualidade.
É comum também entre os movimentos de esquerda que se use capitalismo como sinônimo de economia de mercado. Leandro Roque explica neste artigo que o que temos no Brasil (e na maior parte do mundo) é um “capitalismo de compadres”, um modelo bem distante do que defendo neste texto. O capitalismo atual realmente serve aos propósitos de um grupo seleto de empresários, que através de conluios com o governo conseguem barrar a concorrência através de ações regulatórias, burocracias e isenções fiscais e criar cartéis e oligopólios. Parece bastante intuitivo afirmar que se posicionar a favor do capitalismo parece ser sinônimo de se posicionar a favor das desigualdades vigentes.
O problema é que o capitalismo não é obrigatoriamente exploratório, como parte do movimento libertário – este site incluso – se esforça em demonstrar. Por isso, trocaremos o termo “capitalismo” por uma expressão com significado mais restrito – livre mercado, designando apenas o arranjo capitalista que preze pelas trocas voluntárias entre os indivíduos e a liberdade plena de escolha, sem a intervenção estatal para garantir privilégios às corporações. Um arranjo que alguns inclusive argumentam não poder ser chamado de capitalista, por propiciar a distribuição de recursos e riquezas o mais igualitariamente possível..
Liberais costumam defender que o livre mercado é um antídoto natural contra qualquer forma de discriminação – uma vez que nenhum empregador deixaria de contratar uma mulher mais produtiva que um homem simplesmente em nome de preconceito, pois esta atitude acarretaria em perdas materiais para seu negócio. Em outras palavras, a meritocracia nos salvará das desigualdades. Entretanto, esse argumento baseia-se em duas premissas, ambas falsas:
(a) O machismo manifesta-se exclusivamente no mercado de trabalho.
(b) Homens e mulheres têm o mesmo acesso à bagagem necessária para atender as necessidades do mercado.
Se nossa cultura machista se resumisse a menores salários e menor participação em cargos de diretoria, como presume (a), certamente o próprio mercado daria um jeito de corrigi-la. Mas ela é muito mais profunda que isso. Essa cultura se encarrega, por exemplo, de transmitir aos meninos, muito mais do que às meninas, as qualidades mais valorizadas pelo mercado de trabalho – a habilidade de liderança, do pensamento lógico, a capacidade de tomar decisões, a coragem de assumir riscos no campo financeiro -, de modo que mulheres já saem da linha de largada alguns passos atrás dos homens, ao contrário do que se afirma em (b).
Certo. Mas então o livre mercado é inimigo do feminismo?
Não necessariamente. As considerações tecidas no parágrafo anterior servem a dois propósitos: em primeiro lugar, demonstrar que o mercado não é inerentemente feminista, ao contrário do que pensam alguns libertários. Renata Ramos já explicou neste mesmo blog que o capitalismo de fato favoreceu a inclusão de mulheres no mercado de trabalho; mas ele sozinho não faz milagres. Em segundo lugar, a partir destas considerações, é possível aferir que as barreiras que se impõem à superação do machismo são, sobretudo, culturais.
O que significa dizer que estas barreiras são culturais? Significa que é virtualmente impossível para um Estado atravessá-las. Significa que o governo pode tomar as medidas que quiser para combater o machismo que nunca terá sucesso.
Algumas medidas podem colaborar com a causa, de fato. Criar cotas para mulheres em cargos no senado e na câmara, por exemplo, pode ajudar no sentido de criar mais referenciais femininos em posições de poder, o que culturalmente teria um efeito positivo, mas traria grandes distorções na representação democrática, uma vez que posicionamentos que não necessariamente contemplem as demandas da sociedade possam ganhar mais projeção somente pelo fato de suas interlocutoras serem mulheres. Nenhuma intervenção vem sem um ônus.
Ainda que ações afirmativas não causassem prejuízos de qualquer tipo, a ação estatal sozinha não substituiria o trabalho que o movimento feminista tem tido em ampliar a representação feminina, de maneira que, mesmo se tivéssemos um governo empenhado em combater o machismo, essa luta ainda seria essencialmente responsabilidade da sociedade civil.
Se a responsabilidade de enfrentar a cultura sexista continua sendo da sociedade civil de uma maneira ou de outra, é importante questionar qual ambiente é mais favorável a esta luta: uma sociedade em que os indivíduos são dotados de autonomia sobre suas decisões ou uma em que o Estado regula todas as relações interpessoais?
Como já dito, o livre mercado, sozinho, não resolve as desigualdades, mas ele permite que elas sejam combatidas muito mais facilmente. Um governo centralizado simplesmente não tem qualquer incentivo para combater o machismo. O único fator que poderia fazer com que o Estado trabalhasse em prol do feminismo é a pressão da sociedade civil, e essa pressão só aconteceria quando a maioria das pessoas já tivesse consciência suficiente de como a desigualdade de gênero se manifesta e de que ela deve ser eliminada. Ou seja, o Estado só trabalharia em favor das mulheres quando não houvesse mais trabalho a se fazer. As pessoas, por outro lado, são individualmente incentivadas a reduzir as disparidades em proporção inversa à do Estado. Quanto maior a opressão que me atinge, mais me esforço em resistir a ela.
Em teoria isso parece bonito, mas e na prática? Voltemos ao argumento inicial: “vivemos num mundo capitalista e ainda assim somos exploradas”. Sim, somos. Mas, antes, parte dessa exploração é provocada pelo Estado, que, com alta tributação e burocracia para se abrir um negócio, por exemplo, reduz brutalmente o leque de possibilidades de cada pessoa dentro do mercado, forçando-as a se submeterem a trabalhos que consideram exploratórios. E é claro que quem já tem seu leque de opções reduzidas em função de racismo, machismo, capacitismo, apanha muito mais quando isso ocorre.
Não podemos esquecer, também, das desigualdades provocadas diretamente por ações estatais, como acontece com a garantia de direitos trabalhistas exclusivos para mulheres, que aparentemente é boa, mas na prática eleva os custos de uma funcionária mulher em relação a um funcionário homem e aumenta a diferença salarial entre eles. A estabilidade gravídica, por exemplo, é vantajosa para a trabalhadora grávida, mas sua obrigatoriedade certamente prejudica as mulheres mais do que ajuda, uma vez que desencoraja a contratação de mulheres em idade fértil. Além do mais, esse benefício ainda poderia ser estabelecido em um contrato livre entre empregador(a) e empregada conforme lhes parecesse melhor sem que todas as mulheres da sociedade fossem prejudicadas por isso; em um mercado altamente competitivo, a concessão de licença e outros benefícios é vantajosa para ambos os lados do acordo, pois permite à mulher conduzir sua vida familiar e profissional mais confortavelmente e garante ao/à empregador/a a segurança de manter uma boa funcionária. Novamente, nenhuma intervenção vem sem ônus, e arranjos voluntários normalmente se mostram mais eficazes que elas.
Não somente o Estado é inerentemente incapaz de combater o machismo, não tem incentivos para fazê-lo e suas ações permitem que o machismo tenha impactos ainda maiores sobre a situação econômica da população feminina. Mesmo que ele pudesse efetivamente acabar com o machismo, McElroy nos fornece mais um motivo para por que não deveríamos confiar nele para fazê-lo, em entrevista ao blog Laissez Faire:
[As ações afirmativas promovidas pelo estado] passam a mensagem clara e inequívoca de que problemas sociais devem ser resolvidos por meios governamentais, ou seja, pela força governamental. Toda lei possui uma arma por trás de si. Se as companhias não obedecerem, elas terão suas propriedades confiscadas sob a forma de multas e, se elas se recusarem a pagar, elas enfrentarão prisão. É isso que cotas e ações afirmativas nos dizem: use a força para resolver problemas. Quando se torna sabedoria popular que nós deveríamos usar a força e celebrar seu uso como algum tipo de vitória moral, então a ruína de nossa sociedade pacífica está próxima.
Em poucas palavras: existe uma contradição sensível em exigir que o Estado use de sua capacidade de coerção, proveniente de seu monopólio do uso de violência, para obrigar a sociedade a ser menos violenta para com as mulheres.
É interessante notar que, substituindo todos os pontos desse texto em que me refiro diretamente a mulheres por algum outro grupo marginalizado, mantém-se a mesma linha de argumentação. O livre mercado promove mais liberdade positiva a qualquer minoria, não somente às mulheres. Liberdade e justiça social não precisam e nem devem andar separadas.
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Nota: uma ressalva à política de ações afirmativas criticadas por McElroy é o caso das cotas raciais e sociais em universidades públicas, sobre as quais tenho uma opinião semelhante à que Pedro Menezes expressou em seu artigo “Em defesa de cotas – e de outras políticas sociais focalizadas”: não se trata de uso da força para promover igualdade, uma vez que as universidades são propriedade do próprio Estado.