Por Valdenor Júnior
O maior problema da política brasileira não é o PT ou o PSDB, mas o pemedebismo – que não mais está restrito ao PMDB, mas é a “gramática profunda” de nossa estrutura política, segundo o criador deste conceito, o cientista política Marcos Nobre.
Marcus Nobre apresentou o conceito no artigo “O Fim da Polarização“, na Revista Piauí, de 2010, e em seu livros “Choque de Democracia: razões da revolta” e “Imobilismo em Movimento: da abertura democrática ao governo Dilma” (cuja capa ilustra este post), ambos de 2013.
No artigo, ele explica que o pemedebismo surge como uma estratégia de organização do PMDB para comportar muitas forças políticas distintas em um bloco conjunto, por meio de um sistema de “vetos” que assegura que nenhuma dessas forças poderá esmagar a outra, a partir da redemocratização na década de 80:
“Para conseguir manter dentro de um mesmo partido correntes e tendências tão heterogêneas, a nova sigla aperfeiçoou um sistema interno de regras de disputa que já funcionara durante a década de 70 e que, a partir de 1983, precisava também incluir figuras de uma nova ordem de grandeza: governadores de estado. Esse sistema pode ser descrito de maneira simples como um sistema de vetos. (…) É um modo de fazer política que franqueia entrada no partido a quem assim o deseje. Pretende, no limite, engolir e administrar todos os interesses e ideias presentes na sociedade. Em segundo lugar, garante a quem entrar que, caso consiga se organizar como grupo de pressão, ganhará o direito de vetar qualquer deliberação ou decisão que diga respeito a seus interesses. Foi assim que o PMDB se organizou a partir da década de 80. Como se o partido fosse, em si mesmo, um governo de união nacional.”
Em resenha ao livro “Imobilismo em Movimento” no blog Amálgama, Celso Barros assim descreve os elementos centrais do pemedebismo segundo Nobre, acrescido de alguns elementos que são agregados ao longo do livro:
“O pemedebismo é apresentado, ao início, como uma “cultura política” que reúne, ao mesmo tempo, os seguintes elementos: (a) o governismo, a tendência a aderir a qualquer governo; (b) a configuração da política como um sistema de vetos, mais do que de propostas positivas; (c) a preocupação em obter supermaiorias legislativas; (d) o esforço dos insiders a criar barreiras de entrada para os outsiders; (e) o esforço para bloquear qualquer iniciativa alternativa nos bastidores, fora do jogo aberto.”
Já Vinícius Justo, resenhando no blog Amálgama o livro “Choque de Democracia”, assim sintetiza o conceito de Nobre:
“Parte da crítica corrente ao PMDB é encampada por Nobre: ausência de ideologia (ou melhor, ideologia das conveniências), conforto em apoiar qualquer partido (desde que fisiologicamente recompensado) e, não menos importante, força nas eleições proporcionais. Para o autor, o PMDB é a manifestação mais fiel do fenômeno, que não se resume a esse partido. Tratar-se-ia, portanto, de um sistema político razoavelmente fechado e pouco representativo da população, baseado no poder das oligarquias regionais e frequentemente obstáculo para o avanço democrático e social do país.”
Francisco Bosco, em sua coluna no O Globo, assim sintetiza:
“O pemedebismo, conceito central do livro, é a cultura política institucional que se formou na transição da ditadura para a democracia, diante da necessidade de frear os anseios democráticos da sociedade. Tendo surgido no interior do PMDB, com o passar do tempo sua lógica se descolou desse partido e se impôs — é essa a sua ideologia — como condição política (a famigerada “governabilidade”) para qualquer projeto de país. O pemedebismo se caracteriza sobretudo “por estar sempre no governo”, independente de partidos ou programas ideológicos; pela “produção de supermaiorias legislativas”; e por um poder de veto, segundo o qual seus membros têm direito a impedir ou obstaculizar propostas transformadoras que contrariem seus interesses.”
Você pode ouvir o próprio Marcos Nobre explicando com mais detalhes no vídeo abaixo:
Devo alertar ao leitor que o conceito tal como desenvolvido por Marcos Nobre não é isento de crítica, e eu mesmo não concordo com todos os desenvolvimentos de Nobre. As principais críticas ao modo como ele desenvolve isso advém de que, em certos aspectos, ele sobreestima a força e função do pemedebismo no cenário brasileiro (sua alegação sobre o fim da polarização e do completo adesismo ao governo por parte dos partidos brasileiros são questionáveis, por exemplo) ou exagera o caráter distinto desse fenômeno brasileiro em relação aos fenômenos mais gerais estudados na ciência política (como, por exemplo, o Teorema do Eleitor Mediano, que prevê a guinada para o centro político). Para conhecer mais dessas críticas, veja as resenhas supracitadas.
Mas o conceito parece-me descrever muito bem como o PMDB trabalha junto aos governos pós-Collor e funciona como uma força coesa apesar da diversidade interna, e seu caráter distintivo no Brasil estaria relacionada ao seu papel na dinâmica do federalismo brasileiro (não é à toa que se falam nas oligarquias estaduais do PMDB e a repartição tributária é controlada pela União em grande medida), bem como ao fato de que representa uma 3ª maior força política do país, “alternativa” ao PT e ao PSDB, mas sem pretensão de deixar de participar dos governos federais e sem lançar candidatura própria nesta esfera, de tal maneira que a disputa PT x PSDB nunca equivaleria ao bipartidarismo americano ou inglês, mesmo antes da ascensão de Marina como força política capaz de desafiar essa polarização PT x PSDB.
Um bom exemplo da funcionalidade desse conceito para lançar luz aos aspectos distintivos de nosso federalismo, temos o exemplo dado por Marcos Nobre no artigo “O Fim da Polarização” sobre como PT e PMDB dividiram os dividendos políticos quando uniram-se no governo federal:
“Lula criou onde e como pôde políticas sociais compensatórias. Só que repartiu de maneira desigual os seus dividendos políticos. O PT ficou com a formulação, com o controle dos projetos e com o crédito de paternidade (ou maternidade, como se queira). E o PMDB recebeu a maior parte da execução das políticas – justamente a parte que contempla o poder local e abastece a política miúda. O programa Luz para Todos, não por acaso criado por Dilma Rousseff quando ministra das Minas e Energia, pode ser visto como caso exemplar dessa lógica lulista de repartição de dividendos políticos.”
Curiosamente, no atual cenário de incerteza e imprevisibilidade sobre quem ganhará a eleição presidencial de 2014, o deputado federal Eduardo Cunha (PMDB- TV) afirmou para a Folha de São Paulo que metade de seu partido apoia Aécio e metade apoia Dilma; dos 66 deputados eleitos do PMDB, metade apoia Aécio e metade apoia Dilma. O ponto aqui é claro: essas “metades” expressam a cômoda posição de estar ao lado de quem estiver no poder, comparável ao que é feito pelas grandes empresas em suas decisões de financiamento, seja no Brasil ou nos Estados Unidos.
Falando do cenário dos EUA, David S’Ámato destaca como funciona a relação entre as grandes empresas e os dois maiores partidos políticos, que neste ano o PMDB está repetindo:
“Para vislumbrar o real relacionamento entre as grandes empresas e o estado, precisamos apenas examinar brevemente os dados sobre como os comitês de ação política (PACs) das maiores e mais influentes empresas do país gastam seu dinheiro. Considere alguns exemplos de 2010: naquele ano, o comitê da grande empresa de defesa Raytheon deu 56% de seu dinheiro para os democratas e 44% para os republicanos. A gigante aeroespacial Boeing dividiu suas doações quase ao meio, canalizando 53% delas para os democratas e 45% para os republicanos. A gigantesca firma do agronegócio Monsanto deu 46% do dinheiro de seu PAC para o Partido Democrata e 54% para o Republicano.
Essas divisões entre democratas e republicanos evidentemente variam a cada eleição, dependendo de fatores como a composição do Congresso e a probabilidade de vitória de cada um. E certamente diferenças marginais entre candidatos e partidos também pode se apresentar em dada eleição. O ponto aqui, porém, é que as entidades corporativas são como o próprio estado: não-partidárias, mas interessadas apenas em poder e engrandecimento próprio.
Não se engane, nossos leviatãs corporativos não se importam com os nomes que estão no poder, contanto que joguem de acordo com as regras, perpetuando um jogo venal de coesão pública-privada que nada tem a ver com a “liberdade e justiça para todos”. O que pensaríamos sobre um indivíduo que repartisse seu dinheiro quase igualmente entre os dois maiores candidatos ano após ano? Provavelmente que se trata de um louco ou alguém com múltiplas personalidades. Quando uma entidade corporativa o faz, contudo, nós consideramos sua ação (provavelmente de forma correta) como algo estritamente estratégico, uma ilustração da realpolitik e uma maneira com a qual as empresas contam para garantir boas relações com ambas as alas do establishment político.”
O PMDB representa uma força cujo apoio é decisivo no relacionamento do Presidente com o Congresso Nacional e na execução de políticas em vários estados e municípios. Faz parte da realpolitik brasileira que sua presença esteja em qualquer governo, o que significa um importante fator de inércia aos rumos da política na esfera federal. Enquanto militantes de PT e PSDB digladiam-se intensamente nas redes sociais e nas ruas, o PMDB já venceu.
(Fonte)
Já houve alguma chance do Brasil livrar-se ou reduzir substancialmente a importância do pemedebismo? Sim.
Uma delas foi a possibilidade de coligação entre PT e PSDB, logo após a renúncia de Collor, que foi frustrada principalmente pela insistência da base petista no Lula como maior líder popular, com a mística de um futuro presidente operário, como bem explica Eduardo Jorge, candidato à presidência pelo PV este ano, na entrevista abaixo, onde conta os bastidores dessa proposta de coligação que ele mesmo defendia:
Outra foi o mensalão, que garantiria ao PT uma margem de manobra do sistema legislativo sem depender de aliança com o PMDB. Como coloca Franscisco Boco em sua coluna no O Globo:
“Plenamente amadurecida após o impeachment de Collor — quando a classe política concluiu, em sua leitura fisiológica do episódio, pela necessidade de produção de supermaiorias para se sustentar e reproduzir no poder —, essa lógica imobilista atravessa as últimas três décadas, com algumas notáveis inflexões. Tanto o período FHC quanto o período Lula-Dilma firmaram pactos com o pemedebismo: a proposta tem sido a de dirigi-lo sem confrontá-lo abertamente. FHC pôde realizar assim uma necessária estabilização econômica, por meio de uma abertura modernizante e liberal. Já o episódio do mensalão teria sido uma tentativa, concebida por Dirceu, de controlar o pemedebismo, anulando sua lógica chantagista (mas para isso recorrendo à máxima e prática dos fins justificam os meios, com as conhecidas consequências). Por causa da crise do mensalão, Lula e o PT não apenas aderiram ao pemedebismo, no segundo mandato (ao contrário do primeiro, quando o PT chegou ao poder tendo alianças apenas com o PL e pequenos partidos de esquerda), mas aprofundaram sua lógica, ampliando a base a ponto de dissolver a oposição, perdendo qualquer pudor em seu exercício e, assim, normalizando essa cultura política antidemocrática. ” (grifos nosso)
Gasta-se muita energia discutindo se quem deve ganhar é Aécio ou Dilma, mesmo que a rigor as semelhanças entre eles significam que eles poderiam ser do mesmo partido. Penso que deve-se gastar mais energia com as possibilidades de retirar o poder do pemedebismo.
Valdenor Júnior é advogado. Editor no site Mercado Popular. Escreve também para o site internacional Centro por uma Sociedade sem Estado (C4SS) e para o site brasileiro Liberzone, e mantém o blog pessoal Tabula (não) Rasa & Libertarianismo Bleeding Heart. Seus principais interesses são filosofia política, economia mainstream e institucional, ciência evolucionária, naturalismo filosófico, teoria naturalizada do Direito, direito internacional dos direitos humanos e psicologia cognitiva.