Por Arthur Niculitcheff e Valdenor Júnior

Redução da pobreza e maximização da renda dos pobres é justiça social. O lulismo brasileiro precisa ser comentado nesse contexto em seus acertos e seus erros. Como estudo de caso, informa-nos a importância de optar pelos “meios” mais eficazes do ponto de vista econômica para alcançar as “finalidades” mais valiosas do ponto de vista social, com o mínimo de limitação à liberdade individual.

É em sentido semelhante que se posicionou o economista liberal Ricardo Paes de Barros, que assessorou os dois governos lulistas (Lula e Dilma) e inclusive foi o idealizador, junto com sua equipe, do programa mais representativo do lulismo, o bolsa família:

“Se esquerda significa que estamos dispostos a abrir mão de muita coisa, inclusive de eficiência, para ter mais igualdade e as necessidades básicas satisfeitas nas suas mais variadas formas, então eu sou de esquerda. Se ser esquerda significa que para atingir essas coisas você precisa de um Estado gigante, então eu sou de direita. O que eu quero é atingir o maior nível de satisfação com a menor intervenção governamental possível.”

Nesse sentido, analisaremos a questão em três tópicos:  I. A redução da miséria e o crescimento da renda entre os mais pobres sob os governos lulistas é um fato; II. Uma avaliação das principais políticas lulistas no campo econômico e social explica o que aconteceu sob seus mandatos; III. Os limites do lulismo residem em suas contradições pragmáticas e ideológicas.

I. A redução da miséria e o crescimento da renda entre os mais pobres sob os governos lulistas é um fato.

Em “Os Sentidos do Lulismo: reforma gradual e pacto conservador”, o cientista político André Singer discute o fenômeno político e sociológico do “lulismo” no Brasil após a eleição do presidente Lula. O lulismo seria um realinhamento eleitoral, marcado pelo peso do voto daqueles de baixíssima renda (“subproletariado”) para a força política de Lula, sob o mote da redução da pobreza sem confronto nem ruptura com a ordem estabelecida. Nas palavras de Singer:

“Teria havido, a partir de 2003, uma orientação que permitiu, contando com a mudança da conjuntura econômica internacional, a adoção de políticas para reduzir a pobreza – com destaque para o combate à miséria – e para a ativação do mercado interno, sem confronto com o capital. Isso teria produzido, em associação com a crise do ‘mensalão’, um realinhamento eleitoral que se cristaliza em 2006, surgindo o lulismo. O aparecimento de uma base lulista, por sua vez, proporcionou ao presidente maior margem de manobra no segundo mandato, possibilitando acelerar a implantação do modelo ‘diminuição da pobreza com manutenção da ordem’ esboçado no primeiro quadriênio.” (SINGER, p. 13)

Alguns conceitos-chaves precisam ser esclarecidos. Por “subproletariado”, deve-se entender que uma população trabalhadora na miséria que está excluída do mercado de trabalho formal, que Singer denomina de “sobrepopulação trabalhadora superempobrecida permanente” (SINGER, p. 18). Por “realinhamento eleitoral”, deve-se entender “que certas convergências de blocos de eleitores são capazes de determinar uma agenda de longo prazo, da qual nem mesmo a oposição ao governo consegue escapar” (SINGER, p. 14-15).

Esse realinhamento ocorreu porque, antes de 2002, o voto dos mais pobres pesou na derrota de Lula em face de Collor e de FHC, e, na sua 1ª eleição, Lula recebeu mais votos na faixa de renda de 10 salários mínimos em diante do que a de até 2 salários mínimos. Foi em 2006, entretanto, que os mais pobres passaram a ser a base eleitoral principal que garantiria a reeleição de Lula (vide tabelas 1-3 ao final do texto) , e a proporção do voto no PT para a presidência passou a declinar com o aumento da renda do eleitor. Assim:

“O lulismo, que emerge junto com o realinhamento [em 2006], é, do meu ponto de vista, o encontro de uma liderança, a de Lula, com uma fração de classe, o subproletariado, por meio do programa cujos pontos principais foram delineados entre 2003 e 2005: combater a pobreza, sobretudo onde ela é mais excruciante tanto social quanto regionalmente, por meio da ativação do mercado interno, melhorando o padrão de consumo da metade mais pobre da sociedade, que se concentra no Norte e Nordeste do país, sem confrontar  os interesses do capital. Ao mesmo tempo, também decorre do realinhamento o antilulismo que se concentra no PSDB e afasta a classe média de Lula e do PT (…). O subproletariado, reconhecendo na invenção lulista a plataforma com que sempre sonhara – um Estado capaz de ajudar os mais pobres sem confrontar a ordem -, deu-lhe suporte para avançar, acelerando o crescimento com redução da desigualdade no segundo mandato, e, assim, garantindo a vitória de Dilma em 2010 e a continuidade do projeto ao menos até 2014.” (SINGER, p. 15-16 e 21)

Os números são claros: nos governos lulistas, houve uma redução maior da extrema pobreza e da pobreza que no governo anterior, de Fernando Henrique Cardoso.  (Dados podem ser conferidos no site do IPEA)

De 1993 a 2002 (FHC – considerando o Plano Real) a taxa de extrema pobreza caiu 6,28% (0,70% ao ano), enquanto de 2002 a 2009 (Lula) a taxa de extrema pobreza caiu 6,71% (0,96% ao ano). De 1993 a 2002 (FHC) a taxa de pobreza caiu 8,58% (0,95% ao ano), enquanto de 2002 a 2009 (Lula) a taxa de pobreza caiu 12,98% (1,85% ao ano).

É importante destacar ainda que essa diferença se torna mais clara quando se comparam os percentuais da taxa de pobreza e de extrema pobreza em relação à população e o espalhamento dessa redução ao longo dos anos de mandato, como colocamos no gráfico abaixo acerca dos números da extrema-pobreza:

extrema pobreza

Como se percebe, a principal redução da extrema-pobreza durante o governo FHC ocorreu com a estabilização da economia por meio do Plano Real, possibilitando que aproximadamente 9 milhões de pessoas saíssem da extrema-pobreza em 2 anos, mas a queda não foi constante ao longo de seu mandato. O índice foi de 20,3% da população para 15,2%. Já nos governos lulistas até 2012, a queda foi continuada e, progressivamente, aproximadamente 20 milhões de pessoas saíram da extrema-pobreza em 10 anos. O índice foi de 15, 2% para 5,3%.

Essas conquistas históricas na redução da extrema-pobreza e da pobreza não podem ser ignoradas por quem esteja interessado em justiça social. Por isso, é de crucial importância entender porque chegamos aonde chegamos, explicando porque durante a hegemonia lulista isso foi alcançado, mas também esclarecendo quais são seus limites em termos da melhora do padrão de vida no Brasil. É o que nos propomos a fazer aqui.

II. Uma avaliação das principais políticas lulistas no campo econômico e social explica o que aconteceu sob seus mandatos.

Em resumo, pode-se dizer que:

a) Na política econômica, o governo Lula mostrou bastante continuidade com o governo FHC e, na macroeconomia, houve no governo Lula um aprofundamento do tripé macroeconômico instituído tentativamente pelo seu antecessor.

b) Nas políticas sociais, houve uma reforma e expansão de um sistema já existente, mas relativamente arbitrário e baseado no princípio de que o Estado sabe o que os pobres precisam, com mudanças em direção a um modelo mais universal, baseado na auto-determinação pelas pessoas mais pobres, se aproximando de transferências diretas em dinheiro. Por outro lado, a intensificação dos aumentos do salário minimo contribuíram para manter boa parte dos trabalhadores na informalidade e aumentar as transferências para os idosos (devido à indexação de parte dos benefícios previdenciários ao salário minimo), em contraposição aos mais pobres em geral.

Vamos voltar no tempo. Quando a equipe econômica de Itamar Franco, liderada pelo então Ministro da Fazenda FHC concebeu o Plano Real, lhes pareceu que instituir uma paridade com o Dólar seria a melhor ou talvez a única forma de garantir a estabilidade da moeda e evitar a volta da inflação. Mesmo essa sendo possivelmente a decisão correta na época, infelizmente ela levou a desequilíbrios externos que culminaram num ataque especulativo, o qual quebrou a paridade. Esse episódio ocorreu no começo de 1999, após um grande e custoso esforço do governo para manter a paridade até as eleições.

Apos essa quebra da paridade que forçou o Brasil a adotar um regime de câmbio flutuante, o governo instituiu o Regime de Metas de Inflação em junho de 1999 para substituir a âncora cambial na garantia da estabilidade e combate à inflação. Apesar disso, o Regime de Metas instituído pelo governo FHC ainda não tinha muita credibilidade. Os tetos das metas de inflação adotadas com dois anos de antecedência foram ultrapassados nos dois últimos anos do mandato FHC. As metas adotadas para os primeiros anos do governo Lula acabaram sendo completamente irrealistas, e tiveram que ser mudadas excepcionalmente, e o regime de metas como conhecemos e também a inflação só foram estabilizados durante o governo Lula.

No que pese à contribuição da própria eleição (e da expectativa desta) de Lula em 2001 para a instabilidade do sistema e da inflação, ainda sim precisamos considerar que a posição frágil do Regime de Metas se devia a outros fatores macroeconômicos, e ao próprio fato de ser recente. O fato de que não poderia dar garantias sobre o que aconteceria numa vitória da oposição e estar numa situação relativamente frágil depois da quebra da paridade, somado às crises internacionais do período, especialmente da Argentina, não é demérito do governo FHC, ele não poderia ter feito nada sobre isso. Mas é um mérito do governo Lula ter mantido o sistema, dando as garantias que FHC não podia dar, e por tê-lo estabilizado, levando-o a ser como hoje o conhecemos.

 metas de inflação

No campo fiscal, o governo FHC passou boa parte do mandato com superávit primário federal próximo a zero, e um considerável deficit fiscal nos estados e municípios. A partir de meados de 1998 com a renegociação das dívidas dos estados e municípios atreladas ao controle fiscal e com um forte esforço fiscal federal para reduzir a dívida, o governo começou a produzir superávits tanto nos estados quanto nos municípios que, depois de uma transição rápida durante 1999, estabilizaram-se em torno de 2,5% do PIB em 2000 e 2001.

A Lei de Responsabilidade Fiscal foi passada em 2000 no governo FHC para consolidar os avanços institucionais na política fiscal em todas as esferas. O governo Lula não só manteve a politica de superávits fiscais como a intensificou. Os superávits fiscais durante seu governo foram substancialmente maiores, sendo que, entre seu primeiro orçamento em 2003 e o inicio da crise internacional em 2009, a média foi de 3,4%. Depois de um ano de baixos superávits em 2009 devido à politica anticíclica (= para evitar a recessão), em 2010, entregou o superávit do governo para sua sucessora em 2,6%, e subindo rapidamente*. Apesar de uma ligeira ajuda das outras esferas, a maior parte da economia foi no governo federal.

superávit

Portanto, o objetivo da política fiscal de FHC só foi alcançado no governo Lula. A dívida pública subiu constantemente no governo FHC, apesar dos esforços fiscais, e só veio a cair durante o governo Lula, a partir de 2003.

Ainda no campo econômico, é importante abrir um parênteses para destacar os efeitos relativos às privatizações sob o governo FHC e as reformas no crédito, especialmente a introdução do crédito consignado no final de 2003.

Quanto às privatizações, deve-se destacar que estas foram adotadas pelo governo FHC sob a égide do ajuste fiscal, transferindo os ativos das empresas públicas para o setor privado por meio de leilões. Ao contrário do que se propaga por aí, isso não significa que o Estado deixou de estar associado aos setores privatizados: por meio dos bancos públicos e dos fundos de pensão dos sindicatos do setor público, o governo ainda detém grande parcela de controle sobre essas empresas por meio de participação acionária, e as agências reguladoras propiciaram um canal de conluio legalizado entre o governo e as grandes empresas desses setores, como explica detalhadamente Erick Vasconcelos em seu artigo “Como as privatizações criaram novas estatais no Brasil“. Além disso, apesar da venda ser o mecanismo mais adotado ao redor do mundo para que o Estado desfaça-se de empresas públicas, a solução liberal clássica, como a preconizada por Milton Friedman, não é a de vender empresas públicas para quem estiver disposto a pagar mais por elas, mas devolvê-las ao povo na forma de quotas/ações plenamente alienáveis.

Apesar destes aspectos questionáveis, é inegável que a gerência destes setores pela iniciativa privada, com graus maiores ou menores de concorrência a depender das vicissitudes políticas da regulação setorial, ajudou a melhorar o padrão de vida dos mais pobres, porque tornou possível maior barateamento em serviços antes geridos ineficientemente pelo setor público (como no caso da telefonia, apesar de ainda longe do ideal) e evitou excessiva ingerência da politicagem nesses setores (como ocorre na não privatizada Petrobrás).

Quanto às reformas no crédito, no final de 2003, o governo Lula promoveu a expansão do financiamento popular, com base em convênio assinado entre os sindicatos e os bancos para criar o crédito consignado, que, inicialmente restrito aos trabalhadores na ativa, foi logo no ano seguinte estendido aos aposentados e pensionistas da Previdência Social. O crédito consignado possibilita o desconto das parcelas devidas por empréstimo na fonte, o que repercute em taxas de juros entre as mais baixas do mercado, prazos dilatados e pouca burocracia na contratação, uma vez que o desconto na fonte torna o empréstimo consideravelmente menos arriscado.

Desta feita, enquanto na macroeconomia o governo Lula manteve a aprofundou o tripé econômico (metas de inflação, câmbio flutuante e superávit primário) instituído pelo Governo FHC, nas políticas sociais fez algumas mudanças mais profundas.

A base dos programas sociais no governo FHC era a Rede de Proteção Social, que incluía 12 programas diferentes, com diferentes públicos-alvo, com alguns benefícios planejados para compra de bens específicos, como o bolsa alimentação e o auxilio gás.

Parte desses programas era destinado aos trabalhadores, como o seguro desemprego, abono salarial e bolsa qualificação. Parte era destinada aos idosos, como a aposentadoria rural e o beneficio de prestação continuada. Os outros programas eram destinados a combater a pobreza e focavam-se em diferentes públicos, com o bolsa alimentação destinado às mulheres grávidas ou famílias com crianças até 6 anos para o combate à desnutrição, o programa de erradicação ao trabalho infantil destinado às famílias com crianças entre 7 e 15 em troca de garantias de que as crianças não trabalhassem, e o auxílio-gás com o objetivo de compensar a extinção dos subsídios ao gás.

Estes programas voltados à pobreza, posteriormente unificados no bolsa família, tinham, além de critérios de inclusão diferentes, exigências para a manutenção do benefício diferentes, envolvendo atividades escolares curriculares e extra-curriculares para as crianças, e atividades médicas, como vacinação para as crianças e exames pré-natais para as mulheres grávidas.

O Programa Fome Zero, que foi instituído no começo do Governo Lula, seguia premissas parecidas com os programas sociais que o antecederam. A inefetividade do programa levou o Governo a buscar uma rápida mudança na direção dos programas sociais.

A grande mudança implementada pelo governo Lula com o Bolsa Família foi a mudança dos objetivos dos programas, uma troca de programas com objetivos específicos para um programa só com o objetivo de aumentar o poder de compra dos mais pobres, o que representou uma diferença bastante significativa do governo Lula em relação ao governo FHC na questão do enfrentamento da pobreza. Além disso, houve um investimento maciço em incluir todos que estivessem dentro das exigências no programa.

Portanto, o governo Lula promoveu uma necessária reforma liberal nos programas de transferência de renda do governo FHC, os aproximando de um modelo de transferência incondicional de renda apoiado por Friedman e Hayek. Não é à toa que sua concepção técnica tenha sido realizada por um economista liberal, Ricardo Paes de Barros, que participou dos governos lulistas.

Aliado a isso, o governo Lula continuou a reforma da previdência promovida pelo antecessor, tornando também os benefícios da previdência pública menos regressivos e concentradores de renda.

Ambas as medidas – o benefício assistencial do bolsa família e a reforma dos benefícios da previdência pública (especialmente funcionários públicos) – também ajudou que o Brasil começasse a corrigir notável injustiça histórica legada pelo trabalhismo getulista: a concentração do bem-estar social governamental focado exclusivamente na classe média urbana empregada formalmente, excluindo-se, portanto, a grande massa trabalhadora brasileira que Singer denomina de “sub-proletariado”.

O fato de que os trabalhadores formais que compõem a classe média têm, historicamente, maior acesso aos benefícios redistributivos do governo do que a grande massa de trabalhadores na informalidade não é coincidência: o Estado de Bem-Estar Social, seja o incipiente daqui (que começou a ser promovido pelo trabalhismo getulista) ou o dos países desenvolvidos, destina-se principalmente às classes médias, não aos mais pobres. Sobre o contexto especificamente brasileiro, a “Agenda Perdida“, documento elaborado por 17 economistas contendo “diagnósticos e propostas para a retomada do crescimento  com maior justiça social”, alertava em 2002, às vésperas do 1º mandato lulista:

“A grande atenção concedida aos trabalhadores do setor formal em detrimento daqueles presentes no setor informal é outro viés reconhecidamente presente na política social brasileira.Apenas uma pequena parcela dos recursos de programas como Seguro-desemprego, Abono Salarial e Programa de Alimentação do Trabalhador atingem de fato os segmentos mais pobres da população (Barros, Foguel & Coersul 2000). O fato de boa parte da política social brasileira estar voltada para o segmento formal do mercado de trabalho ilustra o favorecimento da classe média, em detrimento das camadas mais pobres. Um dos grandes exemplos dessa tendência é a universidade pública, cujos benefícios diretos para os mais pobres são extremamente limitados e para os não-pobres, evidentes.” (p. 45)

É também digno de destaque que Ricardo Paes de Barro já estimou a importância significativa do maior investimento em educação básica – desde o governo FHC – como um importante fator para a redução da desigualdade de renda e da pobreza no Brasil ao longo dos governos lulistas, superando a contribuição do próprio bolsa família. Como indica a matéria de Rafael Carriolo para a Revista Piauí:

“O Bolsa Família contribuiu para a queda da desigualdade na última década – mais como um aditivo, contudo, do que como a sua causa principal. Como nos anos 60, transformações no “capital humano” dos trabalhadores foram decisivas para as mudanças na distribuição de renda. Entre 1996 e 2009, a escolaridade média de quem procurava emprego passou de 5,4 anos de estudo para 7,3 – um aumento, em 13 anos, de 35% na qualificação dos trabalhadores. Investimentos decorrentes de exigências da Constituição de 88 e da ampliação de verbas para o ensino fundamental no governo Fernando Henrique fizeram com que a desigualdade educacional, que antes crescia, começasse afinal a cair, no início dos anos 2000.

Como agora havia mais gente com maior escolaridade no mercado de trabalho, também o retorno dado pela educação – o quanto compensava ficar um ano a mais nos bancos escolares em vez de procurar emprego – diminuiu. É mais ou menos o que Langoni descreveu para os anos 60, só que de cabeça para baixo. Dessa vez, os retornos da educação ajudaram a reduzir a desigualdade de renda.

Em um trabalho de 2010, Paes de Barros estimou que quase 30% da redução do índice de Gini entre 2001 e 2007 foram provocados por mudanças na escolaridade dos trabalhadores brasileiros. Segundo PB e Sergei Soares, em artigos distintos, outros 20% a 30% da queda se deveram especificamente a uma redução na desigualdade das aposentadorias. (…)

Do total, entre 10% e 15% da queda do índice de Gini, nos últimos anos, foram promovidos pelas transferências do Bolsa Família. Em 2011, o programa custou 16,7 bilhões de reais – o equivalente a 0,4% do PIB. Por chegar aos mais pobres dos pobres, de maneira barata, Soares descreve esse aditivo à redução da pobreza e da desigualdade como “um negócio genial, fantástico, maravilhoso”.

Infelizmente, no campo do salário minimo, a intensificação dos aumentos promovidos também pelo governo FHC levou a um aumento nas transferências previdenciárias. Esse aumento vai no sentido contrário do Bolsa Família: os benefícios previdenciários são focados não necessariamente na parte mais pobre da população, e já são tão extensivos que o Brasil não só tem as menores taxas de pobreza entre os mais velhos entre as faixas etárias, como também terem renda maior que a média do pais.

pobres por idade

(TAFNER, Paulo, Simulando o Desempenho do Sistema Previdenciário: Seu Efeitos sobre a Pobreza sob Mudanças nas Regras de Pensão e Aposentadoria In: TAFNER, Paulo; GIAMBIAGI, Fabio; Previdência no Brasil: debates, dilemas e escolhas; Rio de Janeiro: Ipea, 2007, pag. 427)

Além disso, os aumentos do salário mínimo proíbem entre 30–35% da população empregada brasileira de ter um emprego formal, devido a terem salários menores que o mínimo (e contribui para uma taxa de desemprego maior especialmente entre os jovens). Apesar do aumento da formalidade durante o governo Lula, o número de pessoas ganhando menos do que o mínimo, e, portanto, completamente impossibilitadas de serem formalizadas, manteve-se relativamente constante.

salário mínimo

Portanto, houve várias continuidades entre o governo FHC e o governo Lula na politica econômica. Houve um aperfeiçoamento do Tripé Macroeconômico que ainda não estava bem instituído no final do governo FHC, importantes reformas que melhoraram a politica social, algum avanço na política previdenciária, e uma intensificação negativa da politica de aumentos do salário minimo de FHC.

Tudo isso possibilitou um maior aproveitamento de condições macroeconômicas favoráveis ao Brasil sob os mandatos de Lula, especialmente a partir de 2004. No 1º mandato de Lula, é imprescindível falar do boom das commodities no mercado internacional. Como escreveu Singer: “A expansão mundial contribuiu para que no Brasil houvesse ganhos no topo (incremento no valor das exportações e altas margens de lucro em geral) e no pé da pirâmide social (transferência de renda e aumento dos salários, do crédito e posteriormente do emprego)” (SINGER, p. 146).

Desta feita, podemos ver que o crescimento econômico observado no período foi essencial para a redução da pobreza e para a melhora do padrão de vida dos mais pobres ao longo dos governos lulistas, e que a queda no crescimento sob a gestão de Dilma é uma ameaça à maximização da renda dos mais pobres dentro das circunstâncias econômicas existentes no Brasil.

10710775_295210767329720_8167370881238476681_n

Esse crescimento médio inclusive foi maior em regiões historicamente mais pobres:

1458643_297978153719648_7008678103497183630_n

Portanto, políticas econômicas e sociais mais favoráveis ao mercado possibilitaram essa redução da pobreza, tal como aconteceu em outros países subdesenvolvidos no mesmo período (alguns com índices quatro a cinco vezes maiores de extrema pobreza que o do Brasil pré-Lula).

III – Os limites do lulismo residem em suas contradições pragmáticas e ideológicas.

Ao tratar da dinâmica do lulismo, Singer fala que o PT teve que acomodar duas almas: o espírito do Sion e o espírito do Anhembi.

O espírito do Sion está nas origens “radicais” do partido enquanto uma agremiação de esquerda e socialista, para o que convergiram três grupos em sua formação: a intelectualidade de esquerda (nas classes médias urbanas), o meio católico por intermédio das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e os sindicatos de trabalhadores. Foi daí que

“A confluência das três vertentes produziu rara associação de pensamento radical com amplos estratos da sociedade, como havia ocorrido na Europa um século antes, quando a extensa penetração de ideais socialistas marcou o fim do século XIX e início do XX. A singularidade brasileira foi anotada por Perry Anderson, para quem o PT constituiu o único partido de trabalhadores de massas criado no planeta depois da Segunda Guerra Mundial. (…) O discurso voltado ‘à organização de classe num sentido estrito’ obteve êxito entre os trabalhadores industriais, nas categorias em expansão no setor de serviços, como bancários e professores, entre os funcionários públicos e, até mesmo, junto ao universo agrário, tão duramente cercado pelo coronelismo.” (SINGER, p. 90)

Já o espírito do Anhembi tem como principais características são um comprometimento com a ordem e a estabilidade econômicas, e um abandono da postura de ruptura radical com o status quo, além de admitir alianças estratégicas com a direita – como o PMDB – para assegurar coalizões bem-sucedidas no poder. Foi expressa ao público com a divulgação da Carta ao Povo Brasileiro em 22 de junho de 2002, e aceita rapidamente pela militância em nome da vitória. Ao invés de uma orientação temporária para a campanha, de fato tornou-se orientação permanente dentro do partido. Pela predominância deste espírito sob o lulismo, ocorreu o processo de popularização do partido:

“Em resumo, os indicadores empíricos convergem na direção de que, depois de 2002, o partido passa a ter menos força relativa na classe média, nos eleitores de alta escolaridade, no Sul/Sudeste e nas capitais das regiões mais ricas, cuja aceitação o caracterizava desde a sua fundação. Por outro lado, ampliou em escala significativa o suporte entre os eleitores de baixa renda, de baixa escolaridade, no Norte/Nordeste, nas metrópoles periféricas e no entorno das capitais. O PT vai, portanto, na mesma direção que o lulismo, tornando-se um partido popular. (…) O PT tem hoje cerca de dez vezes mais simpatizantes que vivem no piso da pirâmide social brasileira do que entre os que estão no topo dela, diferença que simplesmente não existia em meados da década de 1990.” (SINGER, p. 116-117)

Curiosamente, foi a prevalência do espírito pragmático sobre o ideológico (ainda que sem uma desvinculação completa, uma vez que a temática de melhorar a vida dos pobres permaneceu como bandeira) que possibilitou que o partido ganhasse apoio entre as populações de baixa renda. Também foi o que permitiu a adoção de medidas corretas do ponto de vista econômico, assim realizando a redução da pobreza e o crescimento da renda dos mais pobres por intermédio do mercado, inclusive o bolsa família contribuiu aqui para ativação do mercado interno em bolsões de pobreza, afinal, transferências diretas de renda incluem as pessoas muito pobres nos mercados).

Veja-se que Ricardo Paes de Barro assessorou os governos lulistas, mesmo sendo um economista liberal, o que seria impossível para o espírito de Sion, mas não necessariamente para o do Anhembi. Isso não é à toa: o pragmatismo torna possível que medidas liberais no campo das liberdades econômicas sejam protagonizadas por partidos de esquerda tradicional ao redor do mundo.

Mas parece-nos que existem limites aqui. Algumas contradições tanto no lado pragmático quanto no ideológico do fenômeno do lulismo restringem, ao menos na atual conjuntura, mais avanços que beneficiariam os mais pobres.

No lado pragmático, a ausência de ruptura com o “capitalismo de laços” brasileiro, com nosso histórico capitalismo de compadrio acentuado, contribui para a manutenção de notórias injustiças distributivas, onde grandes empresas e Estado funcionam em conluio para redistribuir renda para o topo e inviabilizam maiores ganhos para os mais pobres.

No lado ideológico, a afinidade pelo modelo de Estado gerente da economia impõe óbvios obstáculos à adoção de medidas mais céleres na direção de uma economia livre e aberta que gera mais oportunidades e renda para as pessoas, incluindo as mais pobres.

A acomodação do “capitalismo de laços” e a adesão ao modelo de Estado gerencial significam a permanência de uma estrutura de poder político que marginaliza as pessoas mais pobres e prejudica-as em proporção maior do que essas pessoas recebem dele por meio de benefícios assistenciais.

Podemos citar alguns exemplos:

a) o afã desenvolvimentista durante o governo Dilma, com empréstimos subsidiados pelo BNDES a alguns grandes empresários, para criação de multinacionais brasileira, e uma insistência na realização Copa do Mundo sob a justificativa de que atrairia investimentos, quando na verdade o ano de 2014 está marcado por desaceleração do crescimento e, mais grave que isso, por injustiças não reparadas tendo em vista a desapropriação de milhares de famílias e a concessão de monopólios territoriais para a FIFA e as empresas parceiras que desfrutavam de isenção fiscal ampla;

b) uma política habitacional, como o Minha Casa Minha Vida, que tem empurrado os mais pobres para longe dos centros urbanos e contribuído para aumentar o déficit habitacional no país;

c) a promoção de políticas redistributivas para a classe média, como o Ciência sem Fronteiras, que beneficia principalmente os filhos da elite;

d) o baixo crescimento econômico sob a política desenvolvimentista da Nova Matriz Econômica no governo Dilma, que significa uma menor melhora no padrão de vida das pessoas de menor renda, agora e no futuro;

e) entre outras medidas que vão na contra-mão do maior benefício aos mais pobres.

Além do que foi feito, importante esclarecer o que não foi feito, mas que beneficiaria muito os menos favorecidos. Alguns exemplos de medidas não tomadas:

a) reforma de nossa carga tributária, que não somente onera proporcionalmente mais os pobres do que os ricos, como também pune principalmente mulheres e negros em relação aos homens e brancos;

b) reforma trabalhista, uma vez que manteve-se tanto uma estrutura sindical monopolista que nega aos trabalhadores a liberdade sindical e ainda desconta de seus salários – mesmo se não sindicalizado – um tributo destinado aos sindicatos, quanto uma regulação trabalhista que significa maiores custos trabalhistas pagos principalmente pelos trabalhadores sob a forma de descontos explícitos, como o do FGTS (uma poupança forçada sob um dos piores rendimentos do mercado) ou ocultos, como certos impostos nominalmente do empregador;

c) avanços na questão da terra, reconhecendo-se direitos de propriedade bem definidos às pessoas que moram em favelas nos centros urbanos, até porque a maioria delas estão localizados em terrenos públicos que não podem ser apropriados nem por ocupação original nem por usucapião;

d) avanços na legalização do trabalho ambulante, tornando-o menos sujeito ao confisco do investimento dos empreendedores informais;

e) o fim da guerra às drogas, que tem tornado cidades brasileiras campeãs de homicídio e tem tornado as populações de baixa renda mais vulneráveis ao domínio do crime organizado e à ação militarizada da polícia;

f) redução drástica nos custos regulatórios e tributários para o empreendedorismo e abertura de empresas;

g) fim do protecionismo, que faz da nossa economia ainda muito fechada ao comércio internacional;

h) livre imigração;

i) e tantas outras bandeiras que fazem justiça social por meio de uma interação humana mais livre em mercados abertos.

Portanto, se o objetivo do lulismo é realmente a maximização do padrão de vida das pessoas de menor renda, ele precisa guinar para a defesa radical da economia livre e para um liberalismo que priorize os desprivilegiados e injustiçados pelo injusto capitalismo de laços vigente.

 

Notas

* Esses números não necessariamente são iguais aos números oficiais divulgados pelo Governo Federal. O governo federal trabalha com outra metodologia de superávit primário atualmente, aqui uso a metodologia antiga para consistência na comparação com o governo FHC.

Anexo: Tabelas 1-3 

 Tabela 1: Intenção de voto por renda familiar mensal no primeiro turno de 2002

Até 2SM + de 2 a 5 SM +5 a 10 SM + de 10SM Total
Lula 43% 46% 50% 50% 46%
Serra 19% 20% 22% 22% 19%
Garotinho 17% 16% 8% 8% 15%
Ciro 11% 11% 14% 14% 11%

Fonte: Datafolha. Pesquisa com amostra nacional realizada em 27 de setembro de 2002.

Tabela 2: Intenção de voto por renda familiar mensal no primeiro turno de 2006

Até 2SM + de 2 a 5 SM +5 a 10 SM + de 10SM Total
Lula 55% 41% 30% 29% 45%
Alckmin 28% 38% 45% 44% 34%
Heloísa Helena 6% 9% 14% 11% 9%
Cristovam 1% 3% 4% 5% 2%
Outros 1% 1% 0,3% 1% 1%
Nulos/indecisos 8% 9% 7% 9% 9%

Fonte: Ibope. Pesquisa com amostra nacional de 3.010 eleitores realizada entre 28 e 30 de setembro de 2006.

Tabela 3: Intenção de voto por renda familiar mensal no segundo turno de 2006

Até 2SM + de 2 a 5 SM +5 a 10 SM + de 10SM Total
Lula 64% 56% 44% 36% 57%
Alckmin 25% 35% 46% 54% 33%
Branco/Nulo/Não sabe/Não opinou 10% 9% 11% 10% 10%

Fonte: Ibope. Pesquisa com amostra nacional de 8.680 eleitores realizada entre 26 e 28 de outubro de 2006.

___________________________________________________________________________________________

10699053_1534698026747842_1574084730_n

Arthur Niculitcheff é graduando em Ciências Econômicas na PUC-SP. Seus principais interesses, além de economia, são história, filosofia da ciência, e transhumanismo. Costuma passar o tempo livre lendo, estudando ou vagando pelas ruas do centro de São Paulo. Como todas as crianças criadas na blogosfera, é um monetarista de mercado e membro da conspiração bayesiana.

Compartilhar