Por Valdenor Júnior
Fico incomodado quando aparecem notícias como essa de anteontem “Associação propõe suspender voto de quem recebe Bolsa Família“, publicado no Estadão. A Associação Comercial, Industrial e Empresarial de Ponta Grossa, município do Paraná, formalizou em documento uma proposta, encaminhada a candidatos ao legislativo, de “Suspensão do direito ao voto para beneficiados de qualquer programa de transferência direta de renda, nas esferas municipal, estadual ou federal”, cujo objetivo seria suspender o direito ao voto de quem recebe bolsa-família.
O documento dessa Associação é apenas a ponta do iceberg de uma tendência de olhar para o bolsa-família como um programa social que desestabiliza nossa democracia, afinal, dar dinheiro para pessoas de renda familiar muito baixa faz essas pessoas influenciarem o sistema político negativamente, ao votarem apenas pensando nisso. Logo, temos de fazer algo para proteger a democracia dessas pessoas!, segue o raciocínio.
Mas isso é esquecer que, ao longo de toda a história deste país, e inclusive hoje, os principais beneficiários de redistribuição de renda pelo Estado brasileiro são os proprietários de terra, as grandes empresas, a classe média. Gostaria de ouvir primeiro os brados para impedir todos estes beneficiários do status quo de votarem ou de influenciarem a democracia de qualquer maneira (por exemplo, financiando campanhas).
Gostaria de ler de vez em quando uma notícia como essa do título “Associação propõe suspender voto de quem recebe Bolsa-BNDES”. Mas, como empresa não vota, ao menos que pedisse que estas empresas não possam influenciar negativamente a democracia pelo financiamento de campanha (seja proibindo-o, ou, como eu considero bem melhor, impedindo candidatos financiados de participarem de decisões que impliquem em benefício de empresas específicas de dado setor) ou por outros métodos de lobby.
Deixe-me lembrá-lo de alguns fatos rápidos:
a) A classe média é favorecida por uma série de aspectos, um que se destaca é o subsídio ao ensino superior (universidades públicas gratuitas para estudantes de alta renda), que atualmente inclusive conta com o “Ciência Sem Fronteiras”. Ontem, Carlos Góes fez uma nota curta em nossa page, abordando justamente isso:
“Que tal usar o orçamento do Ciência sem Fronteiras para, ao invés de mandar os filhos da elite fazer seus estudos no exterior, pagar bolsas de estudo para mandar alguns estudantes pobres para as melhores escolas particulares do Brasil? Nem precisa mudar o nome do programa. Fazer a Ciência cruzar as fronteiras entre a periferia e os bairros nobres é mais importante do que fazê-la cruzar as fronteiras entre a POLI/USP e o MIT.” (link para o post)
E os trabalhadores formais que compõem a classe média têm, historicamente, maior acesso a benefícios redistributivos do governo do que a grande massa de trabalhadores na informalidade. Isso não é coincidência: o Estado de Bem-Estar Social, seja o incipiente daqui ou o dos países desenvolvidos, destina-se principalmente às classes médias, não aos mais pobres. E como a “Agenda Perdida“, documento elaborado por 17 economistas contendo “diagnósticos e propostas para a retomada do crescimento com maior justiça social”, bem alertava em 2002:
“A grande atenção concedida aos trabalhadores do setor formal em detrimento daqueles presentes no setor informal é outro viés reconhecidamente presente na política social brasileira.Apenas uma pequena parcela dos recursos de programas como Seguro-desemprego, Abono Salarial e Programa de Alimentação do Trabalhador atingem de fato os segmentos mais pobres da população (Barros, Foguel & Coersul 2000). O fato de boa parte da política social brasileira estar voltada para o segmento formal do mercado de trabalho ilustra o favorecimento da classe média, em detrimento das camadas mais pobres. Um dos grandes exemplos dessa tendência é a universidade pública, cujos benefícios diretos para os mais pobres são extremamente limitados e para os não-pobres, evidentes.” (p. 45)
b) Grandes proprietários de terra foram beneficiados com títulos de propriedade não baseados em ocupação e uso (sem falar em fraudes de grilagem e no coronelismo passado e presente), enquanto muitas pessoas pobres ou membros de minorias (como indígenas e quilombolas) não tem sua propriedade sobre a terra reconhecida, seja no campo ou na cidade. Grandes proprietários têm acesso aos meios jurídicos de defesa e valorização de suas terras, mas quem reintegra os pobres?
Além disso, em nossas cidades, o controle da terra urbana é um dos principais mecanismos de exclusão das pessoas mais pobres, às quais, primeiro, se nega acesso à terra de baixo custo por meio de políticas de regulação urbana impensadas (no Rio, incluindo o banimento dos cortiços e da proibição da ocupação e usucapião de terrenos públicos), para, depois, tornar essas pessoas dependentes do governo para obter alguma terra distante dos centros urbanos, sob controle burocrático do processo por meio da fila de espera de um programa social. Dependente do governo, leia-se: dependente também de empresas bem-conectadas do setor imobiliários. E quando é dependente, é dependente mesmo: um efeito colateral inesperado do “Minha Casa, Minha Vida” foi o aumento do déficit habitacional, como informa esta reportagem da Carta Capital.
c) Grandes empresas são beneficiadas por regulações governamentais que dificultam a entrada de concorrentes e por subsídios como aqueles destinados pelo BNDES a elas em maior proporção do que o destinado às pequenas e médias empresas. Além disso, temos um “capitalismo de laços“, onde mesmo as “privatizações” não separaram o Estado desses setores privatizados: o governo brasileiro continuou controlando as novas empresas privadas através de sua influência sobre o BNDES e seu controle dos fundos de pensão através dos sindicatos, além do canal de conluio propiciado pelas agências reguladoras.
Em um gráfico, visualize o Bolsa-BNDES:
Suspender o direito de voto de quem recebe bolsa-família significa apenas que estas não poderiam interferir no velho jogo político de captura das rendas públicas que a classe média, os grandes proprietários de terra e as grandes corporações sempre jogaram e sempre exploraram muito bem em seu próprio favor, às expensas dos mais pobres.
Valdenor Júnior é advogado. Editor no site Mercado Popular. Escreve também para o site internacional Centro por uma Sociedade sem Estado (C4SS), escreveu para o site brasileiro Liberzone, e mantém o blog pessoal Tabula (não) Rasa & Libertarianismo Bleeding Heart. Seus principais interesses são filosofia política, economia mainstream e institucional, ciência evolucionária, naturalismo filosófico, teoria naturalizada do Direito, direito internacional dos direitos humanos e psicologia cognitiva.