Por Valdenor Júnior
O candidato Batista é um conservador ou um libertário muito pragmático? A questão foi muito debatida recentemente em seguida ao meu texto “Contra o conservadorismo travestido de liberalismo nas eleições e na mídia“, em fóruns de discussão nas redes sociais compostos por liberais e libertários.
O programa dele, de fato, é muito mais parecido com um programa do Partido Republicano do que do Partido Libertário, se compararmos com o cenário dos Estados Unidos. A ênfase na privatização e no corte de impostos, associado com a proposta de alterar a atual política da prefeitura de São Paulo de redução de danos em relação às drogas (especificamente, o problema social relativo à dependência do crack na chamada “cracolândia”) para uma política de tolerância zero com o usuário e o traficante, portanto, uma política mais repressiva, usando como exemplo o que foi aplicado em Nova York.
(Como já mostrado no texto anterior, isso faz parte da campanha oficial dele, grifos nosso)
Então, isso sinalizaria que ele seria um candidato conservador. Mas várias pessoas reclamaram que isso não era verdade, e disseram que ele se considera um libertário, que em alguns momentos ele teria dito que era um, etc. Para tentar solucionar esta controvérsia, algumas pessoas fizeram perguntas a ele mais explícitas sobre as drogas, e em geral as respostas foram evasivas, nenhuma na qual afirmasse ser a favor da legalização. Mas, na última quarta-feira (26/08/2014), finalmente obtiveram uma resposta direta, a partir da postagem de um mene que sugeria uma maior abragência ao “raio privatizador”:
Após isso, outra pessoa pediu uma resposta direta sobre a “tolerância zero” contida em seu programa oficial, ao que Batista respondeu:
“Olá caro amigo,
1) Sou contra o incentivo do Estado, conhecido como bolsa crack, e com a apropriação de uma região da cidade por usuários da droga e por traficantes, considero isso uma violação ao PNA ferindo dois princípios fundamentais, a liberdade e a propriedade, sendo direitos fundamentais eles precedem a discussão da “guerra das drogas” (deixando claro que eu como um Libertário respeito a liberdade individual do individuo em usar entorpecentes). Quando gravei o vídeo da minha campanha na região conhecida como crackôlandia, fui recebido com pedaços de paus e pedradas dos viciados, pude ouvir da população várias reclamações sobre assaltos e roubos nas redondezas que fazem com que os moradores evitem tal área, além disso, as propriedades próximas a região sofreram forte desvalorização.
2) Eu como candidato a deputado estadual não legislo sobre a política de drogas, ficando a cargo dos deputados federais.
Espero ter respondido seus questionamentos, obrigado pela visita.”
Foi questionado novamente, nesse mesmo post, para falar diretamente da tolerância zero, e esclarecê-la, mas nenhuma resposta mais foi fornecida até a publicação deste texto.
Vamos resumir essas respostas mais seu programa, para entender o que Batista propõe: 1) É favorável à legalização do consumo de drogas (não falou diretamente sobre o comércio, mas acho que ficou implícito); 2) É contra o bolsa-crack (apelido pejorativo atribuído ao programa social Braços Abertos) porque este seria uma forma de financiar o consumo com dinheiro dos impostos; 3) É contra a continuação da existência da “cracolândia”, porque esta consistiria em uma apropriação de uma região da cidade por usuários de drogas e traficantes, com assaltos, roubos, e desvalorização de propriedade; 4) Defende a tolerância zero com o usuário e com o traficante (repressão); 5) Irá falar na Assembléia Legislativa em defesa da legalização das drogas; 6) Propõe tratamento sério ao dependente, acompanhamento psicológico e reintegração social; 7) Governo estadual deverá recuperar áreas degradadas, “estabelecendo políticas habitacionais e incentivos fiscais para cidadãos e empresas que venham a ocupar tais espaços – locais hoje tomados por traficantes, prostitutas e usuários de crack“.
A questão é: como tudo isso pode ser satisfeito simultaneamente? Como um candidato pode defender a legalização das drogas no longo prazo, mas fortalecer a repressão no curto? Como a “cracolândia” irá desaparecer por intermédio de suas propostas de tolerância zero + tratamento de dependentes +políticas habitacionais e incentivos fiscais para cidadãos e empresas ocuparem os espaços, sem ferir ainda mais a liberdade? Algumas opções: prendendo traficantes e usuários; internando compulsoriamente todos os usuários, de modo que os traficantes irão embora; usando da política pública (habitacional e fiscal) e da polícia para “higienizar” a área, expulsando habitantes marginalizados. Mas isso realmente seria um ganho de liberdades individuais em relação ao “bolsa crack”?
A política de tolerância zero mencionada como exemplo (Nova York) baseava-se na “teoria das janelas quebradas”, onde punir pequenos delitos automaticamente, com detenções e/ou detenções seguidas de obrigação de comparecer em juízo (cujo não comparecimento pode resultar em prisão), poderia desestimular o crime mais grave, ao estabelecer a ordem pública necessária para que os cidadãos tenham uma sensação de segurança e controle sobre as ruas.
Exemplos de pequenos delitos: vadiagem, embriaguez pública (ou simplesmente beber em público), urinar em público, prostituição de rua, mendicância agressiva, senhorios que alugam a baixo custo em bairros mais pobres que aceitam pequenos traficantes de drogas como inquilinos, pichação, delitos menores relacionados às drogas, etc.
De fato, em termos mais gerais de Estados Unidos, a tolerância zero em matéria de drogas significa ter como alvo os usuários de drogas, ao invés dos transportadores ou vendedores, sob o pressuposto de que sentenças duras e a imposição estrita da lei quanto ao uso pessoal reduziria a demanda, e, portanto, a causa do tráfico de drogas. Portanto, tolerância zero significa uma imposição mais rígida da proibição das drogas, com um policiamento mais agressivo cujo alvo são pessoas que cometem delitos não tão graves assim.
Batista afirma ser contra a apropriação de parte da cidade por traficantes e usuários, porque esta seria uma violação ao princípio de não (iniciação da) agressão por parte deles. A agressão consistiria nos relatos de assaltos nas redondezas e na desvalorização das propriedades. Queria entender bem também o que se entende por “apropriação de parte da cidade”. Um morador de rua apropria-se de parte do espaço público ao dormir ou vagar por ali? Ou um conjunto de moradores de rua apropriam-se indevidamente de um espaço público ao dormirem ou vagarem por ali? Ele também não deixa bem claro o que entenderia por isso, mas afirma que esta seria a causa de assaltos e desvalorização de imóveis na região, o que feriria o direito à propriedade.
Ou seja, trocando em miúdos: Batista quer que os moradores de rua (parte deles ao menos) saíam dali, porque aí deixaria de existir apropriação do espaço público. Como? Se seguirmos ao pé da letra, ele estaria defendendo uma política baseada na detenção pelo uso de drogas, mas, mesmo que queira argumentar futuramente que quer apenas prender aqueles que roubarem, fica a pergunta: como isso cessaria a desvalorização das propriedades e a “apropriação de parte do espaço urbano pelo fato das pessoas morarem e vagarem por ali”?
Para que Batista cumpra sua promessa, é preciso remoção de um contingente significativo de pessoas, e isso, no mínimo, demandaria ou detenção de usuários ou sua internação compulsória, e, acessoriamente, o uso da política pública (habitacional e fiscal) e da polícia para que outras pessoas ocupem os espaços com a saída dos habitantes marginalizados, inviabilizando o retorno destes nas mesmas proporções (o que ele de fato defendeu, inclusive, mencionando pejorativamente as prostitutas ).
Usar uma política de tolerância zero para com o uso de crack para acabar com a “cracolândia” (por intermédio de alguns dos ou todos os instrumentos supracitados) significa tornar essa população um alvo ainda mais vulnerável da repressão policial, como o neurocientista Carl Hart comentou, em entrevista, que o mesmo ocorreu nos Estados Unidos:
“Vendo a experiência brasileira, acho que vocês vão reviver o pesadelo que vivemos nos anos 80. E o pesadelo não é o crack em si, mas as políticas públicas que surgem como resultado do seu uso. Quando o crack fica fora de controle e quando a população tem a noção disto, o governo dá permissão à polícia para que ela faça o que for preciso. Algumas das medidas serão pessoas mortas, presas e daí por diante. E isto terá a aprovação da sociedade.”
Não consigo entender, portanto, como reprimir usuários por meio da coerção estatal seja ferir menos a liberdade do que a desvalorização de imóveis. O que nos leva a outro ponto.
Batista propõe a tolerância zero como substituto ao “bolsa crack”, que ele deseja abolir. Mas o programa “Braços Abertos” (denominado pejorativamente de bolsa crack) é um exemplo de política de drogas que nós chamamos de “redução de danos”, que é muito menos repressiva, coercitiva e violenta que a política de tolerância zero!
Segundo a International Harm Reduction Association,
“Redução de danos refere-se às políticas, programas e práticas que buscam reduzir os danos associados com o uso de drogas psicoativas em pessoas incapazes ou indispostas a parar. As características-chave são o foco na prevenção do dano, ao invés da prevenção no uso da droga por si só, e o foco sobre pessoas que continuam a usar drogas.” (tradução livre)
A redução de danos coloca-se, portanto, entre a total legalização e a total repressão às drogas, uma vez que retira o fardo da repressão e do encarceramento que seria imposto ao usuário em um regime de tolerância zero.
A prefeitura Haddad, independente de críticas que possam ser dirigidas ao formato do programa Braços Abertos, adotou a política de redução de danos, reduzindo a repressão e coerção sofridas pelos dependentes de crack em situação de marginalização. Esse tipo de política é mais liberal do que propor mais repressão e coerção como faz Batista.
Então, resta demonstrado que a proposta de Batista, no que se refere às drogas, é mais coerção, mais repressão, mais restrição à liberdade de um grupo relativamente marginalizado. Ou, pelo menos, se ele pretender de fato cumpri-la, não tem como evitar tal resultado.
Mas alguns defendem que o combate ao crack é uma troca menor que libertários deveriam estar dispostos a fazer para ter mais privatizações e cortes de impostos.
Em fóruns de discussão nas redes sociais, vi autodeclarados anarcocapitalistas defendendo que falar contra o programa Braços Abertos dá voto, e devemos ceder, pragmaticamente, neste ponto, já que, assim, poderíamos eleger um candidato liberal.
O que esses libertários estão dizendo é: deveríamos aceitar uma política de drogas mais repressiva em troca de mais privatizações e cortes de impostos.
E isso é um absurdo, um grave equívoco.
A legalização das drogas é uma das pautas mais urgentes de nosso tempo. O sofrimento, o encarceramento, a violência homicida, as limitações sobre as liberdades civis, os pretextos para brutalidade policial, e a fonte de financiamento rápido para o crime organizado que a guerra às drogas gerou são muito maiores do que qualquer dano que o consumo de drogas causaria aos seus usuários, e o benefício da legalização em reduzir privações de direitos básicos como vida e liberdade é maior do que o de realizar privatizações e corte de impostos para reduzir restrições ao exercício da propriedade privada (onde, inclusive, ainda há o risco de focar-se na privatização ao invés da liberalização, esta última sim o mais importante, e de privatizar-se de maneiras que nem economistas liberais como Milton Friedman concordariam).
Falando em Milton Friedman, os liberais brasileiros deveriam se inspirar nele, ao invés de adotar um pragmatismo que não compreende ou entende superficialmente a grande agressão que a guerra às drogas causa a todos nós, em especial aos menos favorecidos. Em entrevista à Folha, assim se pronunciou:
“Folha – “Legalize já”?
Milton Friedman – Sim. É imoral que os Estados Unidos proíbam as chamadas drogas ilegais. Sou a favor da legalização de todas as drogas, não apenas da maconha. O atual estado das coisas é uma desgraça social e econômica. Veja o que acontece todos os anos neste país: colocamos milhares de jovens na prisão, jovens que deveriam estar se preparando para o seu futuro, não sendo afastados da sociedade. Além disso, matamos milhares de pessoas todos os anos na América Latina, principalmente na Colômbia, na tal “Guerra contra as Drogas”.
Nós proibimos o uso das drogas, mas não podemos garantir que elas não sejam de fato consumidas. Isso só leva à corrupção, à violação de direitos civis. Acho que o programa contra as drogas dos EUA é uma monstruosidade e ele é que devia ser eliminado. A maconha é apenas um pequeno pedaço desse problema, mas essa equação pode ser aplicada a qualquer droga hoje em dia ilegal.”
Acreditar que assistência social a dependentes de crack paga por meio de impostos seja tão ruim quanto a repressão a eles por meio da polícia e do aparato punitivo estatal é uma postura que fere todo bom senso e rejeita a tradição liberal de reduzir os danos que o Estado causa aos menos favorecidos.
Isso desconsidera como a própria guerra às drogas estatal tem contribuído para cenários de marginalização como os que vemos na cidade de São Paulo, e que o problema social gerado pela proibição das drogas precisa ser lidado de forma criativa e sensível por liberais comprometidos com o maior bem-estar aos menos favorecidos. Se o Estado causou estas injustiças, há um dever de retificação, que, inclusive, justificaria programas de assistência no curto prazo (aplicando-se um argumento mais geral e abstrato usado por Robert Nozick), independente se o Braços Abertos é a melhor forma de fazê-lo ou não.
Contudo, perceba: mesmo que você rejeite qualquer programa de assistência no curto prazo (e, por exemplo, apoia programas de assistência voluntários), equivaler o equívoco do governo gastar impostos na reabilitação de dependentes de crack aos custos humanos da repressão total às drogas é afirmar que menos “x” reais no bolso dos pagadores de impostos seja tão ruim quanto vidas arruinadas pelo encarceramento em massa por crimes sem vítima ou pela violência gerada desnecessariamente.
Aceitar uma guerra às drogas mais repressiva, mesmo que temporariamente, para obter em troca privatizações e cortes de impostos, é coadunar com a intensificação de uma das formas mais brutas de injustiça estatal, internalizar a lógica do poder, e abertamente promover uma política estatal que promove mais marginalização e exclusão e privação de direitos civis dessas pessoas à margem da sociedade.
Em suma, esse liberalismo fora de contexto, que aceita tal pragmatismo (ao ponto de adotar uma agenda conservadora estranha ao pensamento liberal), acaba resultando em pretexto à injustiça social e econômica, ao aceitar o fortalecimento de uma política que arruína vidas e liberdades civis em troca de uma leve diminuição da carga tributária.
[UPDATE 10.09.2014: Segundo alguns colaboradores do candidato, o mesmo aparentemente teria deixado o discurso da tolerância zero e mantido apenas o de terminar o programa Braços Abertos (veja discussão relacionada a isso em meu outro texto). A única evidência pública encontrada para isso foi a desta foto. Portanto, caso ele tenha esclarecido melhor esta posição, o texto mantém-se como um alerta para a incorporação de bandeiras conservadoras por libertários com base em pragmatismo, ainda que temporariamente. Além disso, um melhor esclarecimento quanto às políticas de redução de dano, como o Braços Abertos, também é necessário.]
Valdenor Júnior é advogado. Editor no site Mercado Popular. Escreve também para o site internacional Centro por uma Sociedade sem Estado (C4SS) e para o site brasileiro Liberzone, e mantém o blog pessoal Tabula (não) Rasa & Libertarianismo Bleeding Heart. Seus principais interesses são filosofia política liberal, economia mainstream e institucional, ciência evolucionária, naturalismo filosófico, teoria naturalizada do Direito, direito internacional dos direitos humanos e psicologia cognitiva.