Por Valdenor Júnior
Uma grande mentira contada em nosso Brasil é a de que o conservador é um liberal moderado ou vice-versa. O conservador seria um liberal sem aquele tom mais radical do anarquismo de mercado ou do minarquismo estrito, já que deixa algum espaço aos valores tradicionais da comunidade para moldar a ordem legal. Seria o “liberal clássico do século XIX”. Portanto, liberalismo moderado e conservadorismo seriam termos intercambiáveis.
Isso é ignorar a história.
Recomendo para leitura os artigos “Esquerda Liberal: A Grande Amnésia“, escrito por Alain Cohen-Dumouchel e traduzido por Raphael Moras de Vasconcellos, e “O mito do Estado Liberal do século XIX: liberalismo clássico como oposição (e esquerda)“, escrito por mim. Ambos demonstram que o liberalismo durante o século XIX foi uma oposição de esquerda. Um trecho do primeiro:
Durante cento e cinquenta anos, os liberais ocuparam os bancos da esquerda na França. De 1789 a 1930, os liberais e seus movimentos afiliados se sentaram majoritariamente à esquerda. Em 1840, os deputados mais puramente liberais ocupavam a extrema esquerda da assembleia. Não contente de combater a direita nacionalista, clerical, corporativista e protecionista, eles se destacavam mesmo de outros liberais, mais lestos no compromisso com o poder. A outra esquerda, a esquerda jacobina, estava nessa época completamente desacreditada. A lembrança de suas violências e de seus fracassos econômicos e financeiros estava ainda fresca na memória dos franceses.
Essa esquerda liberal, esses “economistas” como se chamavam, militavam pela democracia republicana, pelo livre comércio, pela educação gratuita e obrigatória, pela universidade livre, pela liberdade sindical e de associação, pelo estado de direito, o respeito aos contratos e à propriedade privada individual, e por uma verdadeira laicidade. Eles lutavam contra as uniões (1) e comitês de patrões que buscavam influenciar os poderes públicos para obter a exclusão dos produtos estrangeiros. Eles restabeleceram a liberdade sindical e de associação interditadas pelos jacobinos logo após a Revolução. Eles igualmente aboliram a escravidão por duas vezes, antes e depois de Napoleão. Eles eram contados entre os raros membros da Assembleia que se opunham à colonização (sem serem unânimes na questão) bem ao contrário do socialismo crescente.
Até o meio do século XIX, a esquerda era quase exclusivamente o partido do indivíduo, contra a direita, que era o partido do coletivo, da família, da pátria e da religião. A virada da esquerda ao coletivo, tímida em 1830, se intensifica em 1848 e irá crescendo até o fim do século. A presença à esquerda de liberais republicanos ou radicais se mantém até o começo do século XX.
Um trecho do segundo:
é importante esclarecer que o denominado “socialismo utópico”, alcunha conferida ao mesmo por Karl Marx, e que o Diogo Costa prefere denominar de “socialismo experimental”, estava próximo, politicamente, ao liberalismo clássico. Em se tratando de alguns pensadores socialistas não marxistas, nem mesmo a distinção cabe: o socialismo deles era uma radicalização anarquista do liberalismo clássico, como Tucker menciona expressamente em “Socialismo de Estado e anarquismo: até onde concordam e em que diferem” (1888).
Uma importante mostra disso é que Frederic Bastiast, bastião do liberalismo clássico francês, tinha muitos elos em comum com Pierre Joseph Proudhon, o anarquista mutualista: segundo o comentário de Roderick Long à controvérsia entre os dois acerca dos juros, ambos defendiam uma ordem social voluntária baseada sobre propriedade individual e livre troca, e se opunham à intervenção coercitiva no mercado e eram intensamente críticos do Estado, tendo sido aliados legislativos frequentes quando estiveram na Assembléia Nacional, ambos sentados à esquerda, na sequência da revolução de 1848, ainda que pudessem discordar sobre as formas de propriedade individual eram legítimas e que tipos de trocas eram genuinamente voluntárias.
E o liberalismo moderado? Por “liberalismo moderado” podemos entender aqueles que nem sempre expressam tão radicalmente a ideia de liberdade individual, como ocorre no anarquismo de mercado ou no minarquismo rígido (Estado mínimo). Só que essa posição não se define por desviar-se do anarquismo de mercado ou do minarquismo rígido, afinal, a maioria das outras posições políticas também desviam-se desses modelos. Portanto, precisamos entender como distinguir os liberais dentre estes.
Levando em conta o que vimos acima, podemos dizer que o liberalismo historicamente pautou-se por certos valores distintivamente liberais, que afirmam o indivíduo e o cidadão contra uma extensão demasiada do Estado e dos grupos tradicionais, valores tais como a liberdade, os direitos humanos básicos, a igualdade perante a lei, a tolerância, o cosmopolitismo, etc.
Ou seja, o liberalismo é uma posição que defende mudanças sociais e econômicas profundas nas sociedades humanas, mesmo quando aceita certo gradualismo como meio. Historicamente, seu papel era (e deve ser) o de um movimento inclusivo, libertador e humanitário. Por isso, seus valores opõem-se aos valores do conservadorismo.
Um liberal moderado seria aquele que dá muito peso à democracia liberal, e, por isso, aceita a importância das instituições representativas e das instâncias democráticas enquanto esferas de participação cívica, ainda que isso possa significar um desvio em relação ao modelo de voluntarismo puro (que seria representado no anarquismo de mercado e no minarquismo rígido).
Alguns exemplos de discurso “liberal moderado”:
1) Karl Popper:
“A sociedade aberta é aquela em que os homens aprenderam a ser, em alguma medida, críticos dos tabus e a basear decisões na autoridade de sua própria inteligência”
2) Mario Vargas-Llosa:
E de fato é o próprio Llosa que nos alerta que o liberalismo não é simplesmente a defesa de uma economia de mercado relativamente livre, e que governos socialistas ou social-democratas, não apenas os conservadores, podem avançar reformas importantes do ponto de vista liberal:
3) José Guilherme Merquior, liberal brasileiro já falecido:
“O liberalismo moderno é um social-liberalismo, é um liberalismo que não tem mais aquela ingenuidade, aquela inocência diante da complexidade do fenômeno social, e em particular do chamado problema social, que o liberalismo clássico tinha. O liberalismo moderno não possui complexos frente à questão social, que ele assume. É a essa visão do liberalismo que eu me filio.” (Em entrevista ao Jornal Última Hora)
4) Eduardo Gianetti (economista liberal brasileiro), deu a seguinte resposta em entrevista:
(Entrevista contida na matéria “Marina Silva faria governo menos estatizante que Dilma, diz Eduardo Gianetti“)
Ou seja, o liberalismo moderado tende a um “liberalismo social”, portanto, próximo da esquerda moderada social-democrata e progressista, bem mais do que do conservadorismo. Isso porque, como liberais, eles não temem a mudança, e desejam mudanças profundas na sociedade sob os auspícios de valores libertários. Mas seu modus operandi aceita as limitações impostas pela discussão pública nas democracias liberais modernas.
Então, por que alguns confundiriam o liberalismo moderado com o conservadorismo?
Simples. Por causa da Guerra Fria. Com a polarização ideológica no pós-guerra, a conjuntura facilitou ações conjuntas entre conservadores e liberais contra o avanço do comunismo, em situações específicas. Alguns liberais inclusive, infelizmente, foram iludidos pela ideia do “fusionismo” (união entre liberais e conservadores) como forma de fazer avançar a agenda liberal, o que depois demonstrou-se uma estratégia fadada ao fracasso.
Então, durante a Guerra Fria, ficou parecendo que o principal objetivo do liberalismo fosse voltar ao século XIX, onde não existia os Estados de Bem-Estar Social e os Estados marxistas. O erro nessa afirmação é que liberais não querem uma retomada do século XIX, mas sim cada vez mais ganhos em liberdade, para muito além do que o século XIX sequer poderia sonhar levando em conta as condições de sua época. Além disso, o próprio século XIX foi plutocrático e imperialista a maior parte do tempo, mesmo que tenham ocorrido nele algumas das mais básicas conquistas liberais.
Contudo, tal erro era fácil de ser crido no contexto da guerra fria, porque alguns conservadores adotaram uma retórica “liberal” e passaram a defender uma liberdade exclusivamente no âmbito econômico, e alguns simpatizantes do liberalismo com um conhecimento superficial deste acabavam fazendo propostas fora de um contexto de análise adequado, o que serve de pretexto à injustiça econômica em relação aos menos favorecidos. A manifestação mais extrema dessa tendência perversa foi o surgimento do que Jeffrey Tucker denominou de “libertarianismo brutalista“, que pensa a defesa da liberdade de um viés meramente anti-estatista que favorece a afirmação de poder e privilégios dentro das fronteiras rígidas dos direitos de propriedade e da liberdade de desassociação, ao invés do objetivo liberal clássico de reduzir o papel do poder e dos privilégios no mundo.
Portanto, a ideia de que liberalismo e conservadorismo sejam próximos é um erro ocasionado por um acidente histórico, por uma polarização indevida à época da guerra fria que facilitou o uso indevido da retórica liberal e aproximações políticas pontuais que depois mostraram-se inconvenientes à compreensão do papel do liberalismo no mundo. O liberalismo não pode perder sua alma, sob pena de descaracterizar-se.
Diante do acima exposto, espero que o mito de que liberais moderados sejam conservadores (e vice-versa) esteja enterrado de uma vez por todas.
(Infelizmente, sei que não estará enquanto tantos conservadores disfarçados de liberais continuarem propagando suas inverdades por aí.)
Valdenor Júnior é advogado. Editor no site Mercado Popular. Escreve também para o site internacional Centro por uma Sociedade sem Estado (C4SS) e para o site brasileiro Liberzone, e mantém o blog pessoal Tabula (não) Rasa & Libertarianismo Bleeding Heart. Seus principais interesses são filosofia política liberal, economia mainstream e institucional, ciência evolucionária, naturalismo filosófico, teoria naturalizada do Direito, direito internacional dos direitos humanos e psicologia cognitiva.