Por Kevin Vallier
Tradução por Pedro Galvão de França Pupo, texto original aqui.
Chegamos agora ao argumento normativo que Piketty considera o mais importante: que a grande e crescente desigualdade de riqueza é muito fácil de esconder, e, portanto, torna a distribuição de riqueza inacessível ao público eleitor. O benefício do imposto global progressivo sobre capital é que ele vai ajudar a deter paraísos fiscais e criar registros públicos sobre as desigualdades de riqueza. Então aqui estão os dois argumentos:
3A. Falta de Transparência: r > g e o capitalismo patrimonial resultam em altos níveis de desigualdade de riqueza que são fáceis de ocultar sob as condições legais atuais. Isso torna a verdadeira distribuição de renda inacessível ao público eleitor, impedindo que eles tomem decisões coletivas racionais.
3P. Aumentando a Transparência: Um imposto global progressivo sobre capital vai impedir paraísos fiscais e outras instituições que tornam difícil, se não impossível, para o público geral saber qual é a distribuição de renda, já que o poder responsável pela cobrança vai gerar registros precisos.
Na verdade não existe argumento afirmando que o capitalismo patrimonial é a causa da falta de transparência financeira atual, além do fato de que grandes donos de riqueza resistiram com sucesso às tentativas de fazer com que eles divulgassem sua riqueza total. Em vez disso, o argumento para 3A é simplesmente a observação de que, sob condições legais atuais, o alto nível de desigualdade de riqueza é fácil de esconder, especialmente em vista da mobilidade internacional de grandes riquezas, por exemplo, por meio de paraísos fiscais. Então, o público está mal informado sobre níveis de desigualdade de riqueza, e isso é avaliado como sendo problemático para nossas condições econômicas e institucionais atuais.
Mas é importante notar que a dinâmica r > g claramente não é nem necessária e nem suficiente para uma ausência de transparência financeira, e nem Piketty afirma que seja. O problema avaliativo é epistêmico: nós não sabemos quanta desigualdade de riqueza existe, e Piketty acredita que ele a está subestimando. Aqui está a ideia geral nas palavras de Piketty:
A realidade inescapável é essa: a riqueza está tão concentrada que grande parte da sociedade essencialmente não está ciente de sua existência, de forma que algumas pessoas imaginam que ela pertence a entidades surreais ou misteriosas. Por isso é tão essencial estudar o capital e sua distribuição de uma maneira metódica e sistematizada. (259)
Portanto, existe alguma conexão entre desigualdade de riqueza e falta de transparência, mas não é claro se a conexão é causal. Mas acontece que o argumento para 3P não depende de 3A. 3P pode se basear em 1A e 2A com muito mais facilidade. Piketty parece reconhecer isso:
O principal propósito do imposto sobre capital não é financiar o Estado social mas sim regular o capitalismo.
O primeiro objetivo é parar o crescimento indefinido da desigualdade de riqueza [argumento 2A], e o segundo é impor regulações efetivas sobre o sistema financeiro e bancário para evitar crises [argumento 1A]. Para atingir esses objetivos, o imposto sobre capital precisa primeiro promover a democracia e a transparência financeira: deve ficar claro quem é dono de quais bens ao redor do mundo. (518)
Logo, o imposto sobre capital promove transparência, e, portanto, facilita a capacidade de governos de comprimir desigualdades e regular instabilidades financeiras.
I. Aumentando a Transparência
Como antes, você pode clicar aqui para ver todas as passagens que eu considerei relevantes para a defesa de 3P: 12, 259, 444, 455, 472, 474, 494, 515, 518, 519, 521, 525, 526, 529, 530, 569, 570 e duas passagens da réplica de Piketty ao Financial Times.
Algumas amostras:
Impostos não são só uma maneira de exigir que todos os cidadãos contribuam com o financiamento de projetos e gastos públicos e de distribuir o encargo tributário da maneira mais justa possível; também é útil para estabelecer classificações e promover o conhecimento bem como transparência democrática. (12)
Tal imposto teria outra virtude: ele iria expor a riqueza ao escrutínio democrático, que é uma condição necessária para a regulação efetiva do sistema bancário e dos fluxos internacionais de capital. (472)
O benefício para a democracia seria considerável: é muito difícil ter um debate racional sobre os grandes desafios enfrentados pelo mundo moderno – o futuro do Estado social, o custo da transição para novas fontes de energia, a construção de Estados nos países emergentes, e outros – porque a distribuição global de riqueza permanece muito opaca. (519)
Quando soubermos a distribuição da desigualdade de riqueza, saberemos com quanto os ricos podem contribuir, e esse conhecimento é “a justificação mais importante de um imposto progressivo sobre capital” porque “capital é um indicador melhor da capacidade contribuinte de indivíduos muito ricos do que renda, que frequentemente é difícil de medir” (526).
Considerem também as réplicas de Piketty ao Financial Times:
De fato, uma das principais razões pelas quais eu favoreço impostos sobre a riqueza, cooperação internacional e trocas automáticas de informações bancárias é que essa seria uma maneira de desenvolver mais transparência financeira e fontes mais confiáveis de informações sobre as dinâmicas da riqueza (mesmo se o imposto fosse cobrado a taxas muito baixas, com as quais todos pudessem concordar).
A lógica de 3P é simples: se nós tivermos um imposto global progressivo e bem-coordenado sobre riqueza, nós seremos capazes de rastrear a distribuição da riqueza baseada em capital no mundo inteiro, e essa informação vai ser útil para o público eleitor.
Finalmente, considerem a afirmação mais sucinta de Piketty sobre a mensagem de seu livro:
A mensagem principal é que nós precisamos de mais transparência democrática sobre as dinâmicas de riqueza, de modo a ajustar nossas instituições e políticas de acordo com o que observarmos.
Portanto mesmo se todos os outros argumentos fracassarem, Piketty pode se apoiar exclusivamente em 3P. Isso significa que se 3P fracassar, será um problema enorme para os argumentos normativos no livro.
II. Um Imposto Global Sobre Capital Não É Necessário Para Transparência
Impostos destroem riqueza, no mínimo por causa do processo de transferência, mas também porque desincentivam a acumulação de riqueza. Mesmo se você acha que esses efeitos são pequenos, eles não deveriam ser negados. Então, se nós pudermos atingir transparência financeira global sem destruir riqueza, deveríamos fazer isso.
É importante notar que Piketty parece ciente do fato de que podem haver outros métodos:
Mas se a democracia pretende retomar o controle sobre o capitalismo globalizado financeiro deste século, ela precisa inventar novas ferramentas para se adaptar aos desafios de hoje. A ferramenta ideal seria um imposto progressivo global sobre capital, junto com um alto nível de transparência financeira internacional. (515)
O imposto deve ser implementado junto com um alto de transparência. Isso insinua que nós podemos obter a transparência financeira sem o imposto. Considere a réplica de Piketty para o Financial Times:
De fato, uma das principais razões pelas quais eu favoreço impostos sobre a riqueza, cooperação internacional e trocas automáticas de informações bancárias é que essa seria uma maneira de desenvolver mais transparência financeira.
Nós devemos favorecer impostos sobre riqueza, cooperação internacional e trocas automáticas de informações bancárias para produzir transparência financeira, então o imposto global não é o único responsável pela geração da transparência.
A questão é por que o imposto é necessário para que haja transparência. Ele não parece ser. E se ele não é necessário, o principal argumento normativo em “O Capital” fracassa.
Não quero ser injusto, então deixe-me ver se existe algo mais a ser dito. Isso é, o que o confisco de riqueza acrescenta à transparência que não seria feito por simples exigências de divulgação? Talvez houvesse alguma resistência à transparência obtida por simples exigências de divulgação que não se aplique a um imposto. É difícil de acreditar, já que também haveria oposição ao imposto. Talvez a ideia é que as pessoas iriam se concentrar em se opor a um nível de impostos e esquecer todas as questões de transparência e privacidade, algo parecido com o que foi feito com os impostos de renda. Poucas pessoas reclamam de ter que declarar sua renda para o governo, porque elas estão concentradas em reclamar sobre quanto elas precisam pagar.
Me parece que agora entramos no domínio da pura especulação.
E perceba que mesmo se acreditarmos que um imposto é a melhor maneira de trazer transparência, o imposto pode ser incrivelmente pequeno e ter o mesmo efeito. Por que 2%? Por que não 0.2%? Isso traria os mesmos resultados, não traria? No mínimo, o objetivo de transparência não pode justificar o nível de impostos que Piketty apoia.
Se você quer governos confiscando riqueza, reduzindo o nível total de riqueza e reduzindo incentivos para acumular capital, você precisa de um bom motivo. O objetivo de obter transparência financeira não é um bom motivo. Por que não simplesmente exigir divulgações de riqueza?
Eu queria ter mais simpatia por Piketty para poder responder em seu nome com mais facilidade. Infelizmente, esse é o melhor que posso fazer! Preciso da ajuda de seus fãs.
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Leia também os textos anteriores da série:
A problemática filosofia política de Thomas Piketty parte I: Argumentos Normativos
A problemática filosofia política de Thomas Piketty parte II: desigualdade e estabilidade social
A problemática filosofia política de Thomas Piketty Parte III-A: desigualdade e utilidade comum