Por Kevin Vallier

Tradução por Pedro Galvão de França Pupo, texto original aqui.

Eu vou responder em duas partes aos argumentos de Piketty que afirmam que o capitalismo patrimonial gera desigualdades injustas e que um imposto global sobre riqueza pode reduzir essas desigualdades de maneira adequada. Nesta postagem, eu vou simplesmente analisar a defesa que Piketty faz desses argumentos. Na próxima postagem, vou avaliá-los.

Nesta postagem, vou me concentrar nos argumentos de Piketty que afirmam que o capitalismo patrimonial gera desigualdades injustas e que um imposto global sobre riqueza pode reduzir essas desigualdades de maneira adequada. Aqui estão os argumentos 2A e 2P (argumentos avaliativo e prescritivo, o último levemente modificado):

2A. Desigualdades Injustas: r > g e o capitalismo patrimonial geram desigualdades de renda que não podem ser justificadas em bases igualitárias e/ou meritocráticas, já que essas desigualdades não ajudam a “utilidade comum”.

2P. Corrigindo Desigualdades Injustas:  Um imposto global progressivo sobre capital vai reduzir desigualdades de riqueza injustas de uma maneira eficiente, comparado com as alternativas socialistas e protecionistas.

Piketty tem muito mais a dizer sobre 2A e 2P do que sobre 1A e 1P, mas é mais difícil compreender o que ele diz. Piketty mostra pouca familiaridade com os princípios da justiça distributiva, dependendo em grande parte de uma frase confusa da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que afirma que desigualdades só são justificadas quando elas promovem a “utilidade comum”. Uma tradução padrão da afirmação é que “Os homens nascem e são livres e iguais em direitos.  As distinções sociais só podem fundar-se no bem comum. ” Piketty admite que esse primeiro artigo da Declaração foi originalmente elaborado em termos liberais clássicos, como uma garantia de igualdade jurídica formal e abolição de privilégios aristocráticos, mas mesmo assim ele tenta ir além (“Os elaboradores da Declaração estavam pensando principalmente na abolição das ordens e privilégios do Antigo Regime” apesar de ser possível “interpretar a frase de maneira mais ampla.”  (480))

Assim como na última postagem, clique aqui para minha compilação de passagens relevantes. Você pode encontrá-las nas páginas 19, 22, 31, 240, 241, 264, 334, 335, 364, 417, 443, 479, 480 (página central), 481, 483, 495, 505, 518, 522, 527, 538, 572-3, junto com as notas 20-22 nas páginas 630-631.

 1. O Que Há de Errado com a Desigualdade?

O primeiro passo em qualquer argumento a favor de reduzir a desigualdade de riqueza é descobrir porque desigualdades de riqueza são moralmente problemáticas. Piketty claramente acredita que desigualdades de riqueza são relevantes para determinar o quão justa uma sociedade é. E ele esclarece que “a desigualdade não é ruim em si; a questão chave é decidir se ela é justificada, se existem razões para ela.” (19) E novamente: “Eu não tenho interesse em denunciar a desigualdade ou o capitalismo em si – especialmente considerando que desigualdades sociais não são um problema em si contanto que sejam justificadas.”

Nesse sentido, eu não conheço nenhum filósofo que acredite que a desigualdade é ruim em si. Até mesmo “igualitários em relação à sorte” [N.E.: corrente filosófica segundo à qual desigualdades decorrentes da sorte ou do acaso são injustos; em inglês, luck egalitarianism] pensam que não existe injustiça nas desigualdades causadas exclusivamente pelas escolhas livres de indivíduos. Mas Piketty claramente fica do lado dos igualitários ao defender que desigualdades de riqueza precisam ser justificadas. Em muitas outras visões, incluindo o libertarianismo, a mera existência da desigualdade de renda não exige nenhuma justificativa.

Como mencionado, Piketty recorre à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que ele acredita ser razoável: “Apesar desta definição de justiça social ser imprecisa, porém sedutora,  ela está enraizada na história. Vamos aceitá-la por enquanto.” (31) Parece óbvio para Piketty que algo similar a esse princípio é verdadeiro. De fato, ele afirma que,

 Em um nível puramente teórico, existe na verdade um consenso (parcialmente artificial) sobre os princípios abstratos da justiça social. As discordâncias ficam mais claras quando alguém tenta dar alguma substância a esses direitos e desigualdades sociais e ancorá-los em contextos históricos e econômicos específicos. Na prática, os conflitos se referem principalmente aos meios de realizar verdadeiras melhorias nas condições de vida dos mais desfavorecidos, a extensão precisa dos direitos que podem ser concedidos para todos…, e exatamente quais fatores estão dentro e quais estão além do controle de indivíduos (onde a sorte termina e onde o esforço e o mérito começam?). (480)

A partir disso, eu penso que Piketty acredita que a maioria das pessoas concorda com a frase da Declaração, pelo menos como um princípio abstrato. E mesmo quando tentamos aplicar o princípio, a maior discordância é sobre o que realmente funciona para, digamos, melhorar a vida dos mais desfavorecidos, a extensão dos direitos que podem ser concedidos para todos, etc. (Note que essa é uma das únicas passagens onde Piketty parece estar interessado no benefício aos mais desfavorecidos por si só).

E aqui está como Piketty interpreta o princípio, afirmando que a Declaração

 … inverte o ônus da prova: a igualdade é a norma, e a desigualdade só é aceitável se baseada na “utilidade comum.” (480)

Portanto, o problema com a desigualdade parece ser que desigualdades de riqueza e renda são injustas se nenhuma justificativa pode ser dada para elas, “justificativa” entendida em termos da utilidade comum. Essa é uma visão padrão entre igualitários (dependendo do que você quer dizer com utilidade comum), e uma visão com que Piketty parece acreditar que quase todos concordam, pelo menos no abstrato.

2. Como Desigualdades São Justificadas? Utilidade Comum

Piketty parece acreditar que existem duas maneiras em que desigualdades de renda e riqueza podem ser justificadas: mérito e a promoção da “utilidade comum.” Piketty se concentra mais na utilidade comum, então eu vou dispensar a discussão sobre o mérito (mas veja pp. 241, 334-5, 417 e 443).

O padrão mestre é se desigualdades beneficiam a “utilidade comum”. As citações acima e todas as referências à Declaração deixam isso claro. Ele também deixa claro que desigualdades de renda e riqueza presentes e futuras não são de nenhuma “utilidade comum”, a “bela expressão” com que Piketty começa e encerra o livro (572-3).

O problema do padrão da utilidade comum é que não fica claro o que Piketty quer. Para esclarecer o que Piketty quer dizer, vamos examinar duas passagens centrais. Piketty:

 Resta definir o termo “utilidade comum”. “Os elaboradores da Declaração estavam pensando principalmente na abolição das ordens e privilégios do Antigo Regime, que eram vistos na época como o ápice da desigualdade inútil e arbitrária, logo como não contribuindo para a “utilidade comum”. No entanto, é possível interpretar a frase de forma mais ampla. Uma interpretação razoável é que desigualdades sociais são aceitáveis somente se elas são do interesse de todos e em especial dos grupos sociais mais desfavorecidos. (480)

Piketty reconhece expressamente que a frase que ele usa durante o livro é plenamente compatível com, e na verdade é baseada principalmente em, uma concepção liberal clássica de desigualdade. Isso é estranho. Acho que ele só gosta do jeito que a expressão soa a ouvidos modernos. Mas sua ideia geral, eu acho, é expandir a frase para cobrir mais tipos de desigualdade do que os elaboradores da Declaração tinham em mente, incluindo desigualdades de renda e riqueza. As ordens de privilégios do Antigo Regime eram apenas as piores, porque elas eram “o ápice da desigualdade inútil e arbitrária.” Então todas as desigualdades sociais devem ser no “interesse de todos” e “em especial dos grupos sociais mais vulneráveis.”

Acho que estamos lidando com algo parecido, mas não idêntico, com o Princípio da Diferença de Rawls. Para Piketty, desigualdades econômicas só são justificadas se elas promovem o interesse de todos e especialmente dos mais desfavorecidos. Falarei mais sobre isso em breve. Piketty segue com essa nota de rodapé:

 A noção de “utilidade comum” tem sido o assunto de um debate sem fim, e examinar isso iria muito além da proposta deste livro. O que é certo é que os escritores da Declaração de 1789 não compartilhavam do espírito utilitário que animou uma miríade de economistas desde John Stuart Mill: uma soma matemática de utilidades individuais (junto com a suposição de que a função de utilidade é “côncava”, significando que a sua taxa de crescimento diminui com renda crescente, de forma que a redistribuição de renda dos ricos para os pobres aumenta a utilidade total). Essa representação matemática das vantagens da redistribuição não tem muita relação aparente com a maneira em que a maioria das pessoas pensa no assunto. A ideia de direitos parece mais pertinente. (630).

Piketty usa a ideia da utilidade comum como um princípio mestre no livro e no entanto não acha necessário nos ajudar a compreender qual é o padrão dele. Porém, ele claramente está se baseando na Declaração, e quer contrastar a sua visão com a “soma matemática das utilidades individuais”. Não é com isso que a maioria das pessoas se importa. Mais pessoas se importam com “a ideia de direitos”, que parece “mais pertinente” (mais pertinente para compreender a ideia de utilidade comum). Então esse é outro motivo para pensar que Piketty tem alguma coisa Rawlsiana em mente.

É importante notar que Piketty admite que a ideia de direitos iguais é disputada:

Essa é a tensão central de qualquer abordagem baseada em direitos: até que ponto direitos iguais se estendem? Eles simplesmente garantem o direito de entrar em contratos livres – a igualdade do mercado, que na época da Revolução Francesa realmente parecia bem revolucionária? E se são incluídos direitos iguais à educação, saúde e à uma pensão, como propostos pelo Estado social do século XX, deveriam ser incluídos também direitos à cultura, moradia e viagem? (480)

Mesmo assim, apesar de uma discordância razoável, Piketty parece pensar que algo como o Princípio da Diferença é o correto. Ele afirma: “O ‘princípio da diferença’ introduzido pelo filósofo americano John Rawls em seu livro Uma Teoria da Justiça tem intenções similares.” (480) Mas depois ele faz a falsa afirmação de que “E a abordagem de capacidades favorecida pelo economista indiano Amartya Sen não é muito diferente na sua lógica básica.” Incorreto, mas é um assunto para outro momento.

É notável que Piketty também gosta da compreensão de Rawls sobre os grupos desfavorecidos e sobre bens primários e parece compartilhar de algumas de suas preocupações sobre desigualdades arbitrárias:

Parece razoável definir “os mais desfavorecidos” como aqueles indivíduos que precisam lidar com o maior número de fatores desfavoráveis além de seu controle. Visto que a desigualdade de condições se deve, pelo menos em parte, a fatores além do controle de indivíduos, tais como a existência de dotes familiares desiguais (em termos de heranças, capital cultural, etc.) ou boa sorte (talentos especiais, sorte, etc.), é justo que o governo busque reduzir essas desigualdades o máximo possível. A barreira entre igualdade de oportunidades e de condições frequentemente é bem porosa (educação, saúde, e renda são tanto oportunidades quanto condições). A noção Rawlsiana de bens fundamentais é uma boa maneira de ir além dessa oposição artificial. (630-1).

Claramente Piketty tem a intuição de “igualitários em relação à sorte” e Rawlsianos (que são diferentes) que os mais desfavorecidos são aqueles que sofrem por causas de que não são culpados. Então o governo é justo ao reduzir essas desigualdades o máximo possível. Piketty então recorre à ideia de Rawls sobre bens primários (apesar de chamá-los por engano de “bens fundamentais” e não citar Rawls de maneira adequada), que são bens de que todos precisam para buscarem formas racionais de viver.

O que temos no fim é algo nas vagas vizinhanças do Princípio da Diferença, apesar de Piketty usar o termo confuso “utilidade comum” e afirmar explicitamente que ele não deve ser entendido em termos utilitários ou nos termos em que a frase foi usada originalmente. Ele teria agido melhor se simplesmente tivesse recorrido ao princípio da diferença.

3. Falta de Cuidado Sobre Rawls e Justiça Distributiva

Me permita reclamar brevemente do desleixo de Piketty. Na p. 631 na nota 22, Piketty cita a formulação do Princípio de Diferença em “Uma Teoria da Justiça” e afirma que a formulação “foi repetida em O Liberalismo Político.” Piketty não oferece nenhuma citação para demonstrar isso, e de fato, ele está errado: a formulação do Princípio da Diferença em LP é diferente em vários aspectos chave. Essa e as outras passagens mostram que Piketty se importa tão pouco com clareza nos princípios da justiça distributiva que ele nem ao menos se dá ao trabalho de citar suas afirmações.

Em segundo lugar, a nota 23 da p. 631 se refere ao trabalho de John Roemer, e afirma que o trabalho é mencionado no apêndice técnico online. Roemer não é mencionado em nenhum lugar lá.

4.  2P – Como o Imposto Global Sobre Riqueza Retifica Desigualdades Injustas de Maneira Justa e Eficiente

Agora vamos considerar como o imposto global sobre riqueza retifica desigualdades injustas. Grande parte do argumento de Piketty para 2P é que outros mecanismos de redistribuição não são muito úteis para corrigir desigualdades. Ele deixa claro que a maior parte da redistribuição em estados social-democratas não visa corrigir a distribuição desigual de riqueza (479). Ele também afirma que inflação não é um meio confiável de redistribuir dos donos de capital para todos os demais (apesar de parecer ser assim, prima facie), já que não é controlada diretamente (103). É importante notar que ele se refere à imigração como um efeito redistributivo possível (538). Piketty admite que isso resolve parte do problema, mas em vez disso “redistribuição via imigração adia o problema mas não dispensa a necessidade de um novo tipo de regulação: um Estado social com impostos progressivos sobre renda” (538). (Eu achei que isso foi uma pequena esquiva. É verdade que, depois que a imigração desacelerar, nós teremos o mesmo problema. Mas o mesmo é verdade de um imposto sobre capital: se a taxa de impostos cair, nós ainda temos um problema.) Piketty também se opõe a controles de capital e socialismo como opções viáveis devido a suas ineficiências.

Aqui está o que Piketty argumenta:

 O imposto progressivo portanto é um método relativamente liberal de reduzir a desigualdade, no sentido que a livre competição e a propriedade privada são respeitadas enquanto incentivos privados são modificados de maneiras potencialmente radicais, mas sempre de acordo com regras geradas por debate democrático. O imposto progressivo, portanto, representa um compromisso ideal entre justiça social e liberdade individual (505).

Logo o pensamento é que um simples imposto causa poucas distorções e tem um efeito direto sobre a desigualdade. E ele acha que “a lógica dos direitos universais que governou o desenvolvimento do Estado fiscal e social moderno se encaixa bem… com a ideia de um imposto proporcional ou levemente progressivo” então ele pensa que o imposto se encaixa com nossos compromissos normativos mais amplos (495). Piketty também acha que um imposto sobre capital pode ser benéfico para o crescimento:

Apesar disso, outro argumento clássico em favor de um imposto sobre capital não deve ser negligenciado. Ele depende de uma lógica de incentivos. A ideia básica é que um imposto sobre capital é um incentivo para buscar o melhor retorno possível sobre o seu estoque de capital. … De acordo com essa lógica, o propósito do imposto sobre capital é obrigar as pessoas que usam sua riqueza de maneira ineficiente a vender recursos para pagar seus impostos, garantindo que esses recursos terminem nas mãos de investidores mais dinâmicos (526).

 Então tirar capital das pessoas vai fazer com que elas usem o que restar de maneira mais eficiente.

 5. Conclusão

Nós vimos que Piketty não deixa claro porque a desigualdade é problemática e qual princípio distributivo está operando no livro. Esse princípio da utilidade comum, supostamente amplo, no fim se resume a algo parecido com o princípio da diferença, o que não é só desleixado mas consideravelmente diferente da maneira em que Piketty o apresenta. Nós vamos ver que Piketty também ignora algumas considerações empíricas importantes sobre os custos do imposto sobre capital. Vou discutir minhas preocupações na próxima postagem.

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