Por Valdenor Júnior

Dentro de alguns ramos do pensamento libertário, existe uma mistificação muito grande em torno da figura do “direito à propriedade privada”. Alguns chavões caracterizam esse tipo de postura dogmática: “liberdade é igual à propriedade” (o que critiquei já aqui), “o direito do proprietário aos seus bens deve ser absoluto, por alguma razão a priori [coloque aqui: direito natural, praxeologia, etc.]”, “não há prejuízo econômico injusto fora da violação ao direito de propriedade privada de alguém”, etc.

Gostaria de me concentrar hoje nesta última frase mistificadora: “não há prejuízo econômico injusto fora da violação ao direito de propriedade privada de alguém.” A ideia é que, quando falamos do regime de propriedade privada, a única coisa que temos de nos preocupar é se o direito de propriedade de alguém (conforme definido internamente ao regime) foi violado ou não, sem precisar se preocupar com uma justificação do próprio regime (que deveria ser não-circular: você não pode justificar o regime de propriedade privada recorrendo às razões internas que esse sistema oferece).

É por isso também que algumas pessoas não entendem os esforços de setores libertários que se distinguem por um caráter acadêmico acentuado, como, por exemplo: 1) bleeding heart libertarians que sejam liberais clássicos do Arizona; 2) economia política constitucional de James Buchanan e outros. Ambos os grupos citados tentam fundamentar o regime de propriedade em um consentimento possível que as pessoas fariam a esse regime. Os liberais clássicos do Arizona (bleeding heart libertarians) geralmente falam em um consentimento baseado nos parâmetros avaliativos de cada indivíduo, os liberais clássicos da economia política constitucional falam em um consentimento baseado em auto-interesse.

Isso pode parecer absurdo para alguns libertários. “Os outros devem respeitar meu direito de propriedade, não preciso do consentimento deles para isso!” Ledo engano. O direito de propriedade, da forma como geralmente o visualizamos, permite que uma pessoa exclua outra definitivamente do uso de certos recursos. Em especial, essa exclusão definitiva é acentuada quando ela não depende de características naturais (p. ex. se eu consumo uma fruta, todo mundo fica excluído definitivamente de comê-la porque “não tem jeito mesmo”…), mas sim é garantida artificialmente pelo uso da força.

Veja que isso é graduado: a posse de uma cadeira implica na possibilidade de sua guarda exclusiva (para não desgastá-la, etc.), a posse de uma grande extensão de terra não cultivada e nem usada para nada também pode receber uma garantia de exclusividade por meio da força, mas essa última é que sofreria mais questionamento e pareceria “mais artificial”.

Por que isso ocorre? Porque alguns tipos de propriedade geram externalidades maiores do que outros.

Na economia, usamos o conceito de “externalidade” para dizer que a ação de uma pessoa joga custos em cima da outra unilateralmente. Conforme o teorema de Coase, uma das soluções para este fenômeno é uma atribuição bem-definida de direitos de propriedade negociáveis.

Mas o interessante é que a adoção de determinado regime de direitos de propriedade (que dá tais e tais poderes ao proprietário de determinado tipo de recurso), por implicar em garantias exclusivas artificiais via uso da força para certos tipos de recursos, também gera externalidades.  Os sistemas de propriedade, portanto, são derivados da cooperação social voluntária. São derivados do desejo de internalizar externalidades para possibilitar maiores ganhos na cooperação social. Contudo, por isso mesmo, eles servem à esta função.

Por isso existe a famosa “ressalva” (proviso) de John Locke, adotada também por Robert Nozick e David Schmidtz (este último um libertário do Arizona) modernamente. A proviso determina que, se uma pessoa se apossa de uma parcela de terra, ela deve deixar “tão bom e o suficiente” para os demais. Apesar das controvérsias em torno da delimitação exata do conceito, Robert Nozick pondera que “um processo que normalmente dê origem a um direito de propriedade definitivo, transmissível por herança, sobre algo que antes não tinha dono, não conseguirá fazer isso se a posição dos outros, que não dispõem mais da liberdade de usar o objeto, tornar-se pior” (NOZICK, p. 230). E conforme expliquei em um texto sobre extrativismo na amazônia e posse da terra, isso leva a uma eficiência via otimização kantiana, conceito formulado por John E. Roemer.

Imagine três cenários, para ajudar a refletir sobre isso:

1) Um mundo onde ninguém possui a terra em caráter definitivo. Há vários povos nômades que circulam pela superfície do planeta. Ocorre que, um dia, um desses povos resolve se tornar sedentário, e resolve reivindicar um pedaço da terra como sua. Terra esta localizada na trilha tradicional de povos nômades, mesmo que na maior parte do ano eles não estejam ali. Ou seja, se o povo sedentário tiver reconhecido um direito sobre aquela terra, para impedir outros de entrarem nela, isso significa que todos os demais povos nômades perderam o direito de passar por aquela terra e usá-la temporariamente. Os povos nômades poderiam reivindicar que esse direito não poderia ser tirado.

2) Imagine que há vários pedaços de terra desabitados em nosso mundo. Ocorre que, certo dia, uma forma de vida extraterrestre de inteligência superior chega à terra e, por meio de sua tecnologia, consegue “cultivar”/cuidar/agregar trabalho ou valor a todas as terras desocupadas, tornando desde então impossível para qualquer ser humano realizar apropriação original. Isso é justo? Até que ponto nossas noções de apropriação original pressupõem uma situação na qual os seres apropriadores sejam relativamente iguais?

3) Imagine que, por adotar o regime de propriedade privada que muitos libertários defendem, isso implique que 80% da população passará fome para todo o sempre. Você ainda apoiaria esse regime de propriedade? Não apoiaria nem alguma modificação nele que pudesse torná-lo benéfico aos 80% de não-proprietários? (exemplo original por Jason Brennan)

David Schmidtz, no livro “Social Welfare and Individual Responsability” (livro este no modelo “a favor vs. contra”, onde Goodin foi o defensor do Welfare State) , chega a discutir as várias formas pelas quais se pode preservar o acesso das pessoas aos recursos (comuns desregulados, comuns controlados por um grupo, propriedade privada), e sua conclusão é a de que, para potencializar a cooperação voluntária, é preciso um mix de propriedade privada e propriedade pública que reduza os custos de transação e os custos advindos de externalidades. Como um notável crítico da “teoria ideal” em filosofia política, ele entende que a justiça de um regime de direito de propriedade só pode ser definida por experimentação, uma vez que referida característica é uma evolução espontânea e um atributo emergente do processo pelo qual as pessoas tentam internalizar externalidades de modo a cooperar voluntariamente. Além disso, Schmidtz também analisou circunstâncias nas quais proprietários privados devolveram determinados recursos para os “comuns” (uma espécie de comunismo espontâneo).

Por isso, faz sentido falar em “justiça social”. Justiça social é aplicável à escolha entre diferentes instituições legais para uma sociedade, e requer que essas instituições sejam aceitáveis para todas as pessoas afetadas pelas mesmas, portanto, que beneficiem a todas as pessoas. Ainda que, principalmente na versão de Rawls, a identificação dessas instituições pareça um trabalho para um planejador central, em um plano mais realista seriam instituições que decorrem de cooperação social voluntária e servem de forma satisfatória às pessoas (não só algumas), de modo que estas possam reconhecer a legitimidade do uso da força para apoiá-las.

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