Por Valdenor Júnior e Carlos Góes
Na sua coluna no site da revista Veja, Rodrigo Constantino publicou um estranho texto intitulado “Em defesa do casamento“. Dizemos estranho por vir de alguém que se entende como um “liberal”, mas que adota uma posição frontalmente anti-liberal quanto aos fundamentos da liberdade: a capacidade de decidir seu próprio destino, escolher a quem amar e com quem compartilhar sua vida. No referido texto, Constantino erra duplamente. Ele propaga o mito do casamento tradicional e comete o pecado de fazer precisamente aquilo que acusa seus críticos de fazer – reivindicar para si o monopólio da virtude e querer usar da violência política para impor sua vontade.
Constantino faz uma resenha do livro “What is Marriage?” (Girgis, George & Anderson, 2012). O principal argumento do livro reside na distinção entre duas visões sobre o casamento: conjugal/tradicional (“uma união completa entre um homem e uma mulher é boa em si mesma, mas que é seu elo com o bem-estar das crianças que torna o casamento um bem público que deve ser reconhecido e estimulado pelo estado”) e revisionista (“uma união emocional entre quaisquer adultos”).
Rodrigo Constantino segue dizendo que ele próprio e o livro defendem a visão tradicional, opondo-se ao modelo revisionista. Ele afirma que, “para os autores, isso se deve ao fato de que as sociedades dependem de famílias criadas em casamentos sólidos para produzir aquilo que necessitam, mas não podem garantir por outro meio, inclusive o estatal: crianças saudáveis que se tornam cidadãos conscientes”.
Um erro subjacente na análise constantina é achar que o que ele chama de “união tradicional” seja, de fato, algo tradicional. Na verdade, o casamento existente atualmente é uma instituição extremamente moderna. Até 1977 não existia divórcio no Brasil – e o matrimônio era uma união perene, que permanecia mesmo quando havia separação de bens por meio do desquite. Até 1965 o casamento interracial era proibido em alguns estados dos Estados Unidos. Há menos de 150 anos, o casamento era uma instituição caracterizada pelo poder absoluto do homem sobre sua esposa e esta, como descrevem John Stuart e Harriet Taylor Mill, carecia de autonomia, patrimônio e de sua própria individualidade.
Se Constantino fosse defender, de fato, o casamento tradicional – isto é, o casamento como este prevaleceu durante a maior parte da história humana – ele teria de defender um outro tipo de união. Ele teria de defender uma instituição em que as mulheres eram vendidas como propriedades irrevogáveis (mas, por vezes, comercializáveis) de seus maridos, a poligamia era oficializada ou amplamente tolerada e a união entre pessoas de religiões, nacionalidades ou etnias distintas era proibida ou dificultada pelos senhores da lei. Temos certeza que não é essa tradição ou essa estabilidade que Constantino quer.
A ideia de indivíduos livres formando núcleos familiares voluntários e estáveis que constituam ambientes amorosos e seguros para as gerações futuras é um conceito moderno. Entendemos que Constantino olhe para esse ideal moderno e se desaponte com os dados contemporâneos. De fato, para a maior parte da população, o casamento está perdendo popularidade. Existe, contudo, uma exceção. Um segmento da população passou as últimas décadas almejando precisamente a possibilidade de formar núcleos familiares estáveis e voluntários: os gays.
Por isso, se objetivo for de expandir esse modelo de estabilidade familiar, Constantino deveria apoiar o desejo daqueles que querem essa estabilidade – independente da sexualidade deles. Existe um argumento conservador em favor do casamento gay. Um conservador preferiria um filho sendo criado por uma mãe solteira adolescente ou por um casal gay estável e com capacidade de educar a criança? Constantino, que já saiu do armário conservador, poderia refletir sobre esses argumentos ouvindo a marcha de Mandelssohn. Depois, saberíamos se realmente seu apego é à estabilidade social que ele apregoa ou se é simplesmente um culto à tradição como argumento de autoridade.
Outro erro de Constantino no texto é defender que a sua visão de “união tradicional” deveria predominar na ordem legal e que outros arranjos familiares não deveriam sequer pretender ser considerados como “casamento”. Suas perguntas retóricas são:
“Por que os adeptos do ‘poliamor’ precisam ser enquadrados no conceito de casamento também? Não bastaria ser livre para viver com seu estilo de ‘amar’? Tem que ser igual aos casais tradicionais?” (Constantino, 2014)
Rodrigo faz aqui um culto ao passado, querendo preservar o status quo a qualquer custo, relegando a sociedade a um status quo anacrônico. Ele coloca a tradição em um pedestal e quer preservá-la frente ao novo. Mas a tradição, por si só, não explica nada – e pode ser um grande impedimento à liberdade. Quem nos ensina isso? O próprio Constantino, só que o de 2008:
“A ideia de um pai obrigar sua filha a casar com alguém por interesses políticos é repugnante atualmente, mas já foi uma prática comum. O adultério hoje se resolve com uma separação judicial e o divórcio, enquanto antigamente a adúltera poderia ser apedrejada até morrer. … Evitar o avanço dos costumes e preservar a qualquer custo o status quo, ou seja, as tradições, pode significar a estagnação no tempo, viver na barbárie.” (Constantino, 2008)
Finalmente, Constantino comete seu pecado capital. Ele, que tanto critica seus adversários por isso, reivindica para si o monopólio da virtude na questão conjugal.
Primeiro, ele argumenta saber o que é melhor para a sociedade e para as crianças – sua visão de “união tradicional”. Depois, apesar de não acreditar na função social da propriedade, Constantino deriva uma função social do casamento. Estranhamente, o casamento deixa de ser um contrato que concerne a duas pessoas – ele passa a concernir a toda a sociedade, devendo ser debatido na esfera pública. Com base nisso, Constantino acha que a visão dele deva ser imposta a todos os indivíduos da sociedade, através do uso da violência estatal.
A liberdade de compor arranjos familiares e/ou conjugais é muito importante. Família e casamento vai muito além do objetivo de ter filhos. Além das questões patrimoniais e de herança, abrange também escolhas cruciais de vida e morte com as quais as pessoas precisam lidar, por exemplo, quando uma pessoa precisa de uma cirurgia arriscada e está em coma, são os membros da família que são chamados para dar ou não seu consentimento sobre a realização da cirurgia. Por outro lado, o objetivo de ter filhos não precisa ser pelo caminho “tradicional”. Existe adoção, barriga de aluguel, inseminação artificial – cenários estes que ampliam o leque de escolhas humanas e das responsabilidades que se podem assumir na vida. Constantino quer negar esse reconhecimento a todos que não se adequem ao padrão da “família tradicional monogâmica heterossexual biológica”.
Rodrigo Constantino parece não ter entendido ainda que o maior dever social em uma sociedade livre é cuidar de si mesmo. Como afirma Gerald Gaus, o que constitui uma realização difícil e uma verdadeira virtude em uma sociedade livre é não interferir com os assuntos das outras pessoas. Há uma tendência constante, na humanidade, das pessoas se meterem nos assuntos alheios. A zona onde isso é bem claro são as atividades sexuais entre adultos que consentem, uma vez que, ao longo de toda história, pessoas têm entendido que é seu dever ficar regulando o envolvimento das outras em relações sexuais. Pode até parecer egoísta e mesquinho cuidar dos seus assuntos, mas preocupar-se com os alheios pode, por vezes, ser muito mais egoísta e muito mais mesquinho.
Como Robert Nozick defendeu, não é crível que haja um único tipo de sociedade, uma única utopia, que seja a melhor para todos viverem, uma vez que as pessoas são muitos diferentes. O verdadeiro utopismo é que cada um possa sonhar seu mundo ideal, mas limitado pelo fato de que outros homens também podem sonhar seus próprios mundos ideais, de modo tal que ninguém pode impor seus sonhos aos outros, mas apenas tentar realizá-los em conjunto voluntariamente. Por isso mesmo, um ideal de família não deve ser imposto. Desconfie de qualquer um que queira impor isso.
O Rodrigo Constantino de 2008 tem muito a ensinar a seu gêmeo do futuro:
“O medo cria barreiras para o progresso. O tradicionalista deseja seguir seus caminhos transmitidos, enquanto o liberal quer poder seguir novos caminhos também, sem a coerção dos demais. Sociedades que não dão muito espaço para o novo, para a ousadia dos que desejam se arriscar, perdem incríveis oportunidades. Ficam amarradas às suas superstições sem um bom motivo racional.” (Constantino, 2008)
Em nossa opinião, a solução humilde e plural para o casamento está no título de um dos livros do Constantino: PRIVATIZE JÁ! A solução é não deixarmos que burocratas, políticos ou blogueiros de Veja definam aquilo que cada um de nós, individualmente, deve entender como o melhor para sua vida conjugal. É não termos medo. É não deixarmos que planejem centralmente o amor e o casamento. É sermos livres para decidirmos nossos próprios destinos ao lado da(s) pessoa(s) que escolhermos, sem coerção.
Constantino já soube disso. Talvez, se rever seus textos passados, ele convencerá a si mesmo desses argumentos.
Valdenor Júnior é advogado. Desde janeiro de 2013, tem o blog Tabula (não) Rasa & Libertarianismo Bleeding Heart onde discute alguns de seus principais interesses: naturalismo filosófico, ciência evolucionária com foco nas explicações darwinianas ao comportamento e cognição humanas, economia, filosofia política com foco na compatibilidade entre livre mercado e justiça social. Com Darwin aprendeu a valiosa lição de que entender o babuíno é mais importante do que se imagina.
Carlos Góes é analista econômico com interesses em econometria, economia do desenvolvimento, filosofia política e antropologia. Fez seu mestrado em Economia Internacional na Universidade Johns Hopkins e sua graduação em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília. É co-fundador da rede Estudantes Pela Liberdade no Brasil e da Aliança Pela Liberdade. Publicou em periódicos internacionais, na imprensa nacional e editou o livro “Repensando uma Cultura de Paz e Liberdade”. Mora em Washington, DC, onde se divide entre think tanks e organismos multilaterais. Apesar disso, ele garante que aprendeu muito mais pagando multas na biblioteca e tomando cerveja com seus amigos do que em sala de aula.