Financiamento político de campanha: afinal, o que é “privado”?
por Roberto Xicó*
Nas esteiras das manifestações iniciadas julho, a presidenta Dilma reagiu apresentando uma proposta de reforma política. Sua reação está certa. Há diversos problemas assinalados pelos cartazes que varreram as ruas cuja solução passa, necessariamente, por uma reforma política. O objetivo último deve ser o fortalecimento de práticas de participação mais direta da população e de responsabilização dos políticos. Isto é, do fortalecimento da nossa democracia.
Um dos temas centrais da reforma política (e o que eu quero abordar neste texto) é a proposta de que o financiamento das campanhas torne-se exclusivamente público. Os principais argumentos são que isso inibiria a corrupção e garantiria eleições mais competitivas entre os candidatos. O problema é que esses argumentos passam pela ideia de que os políticos são intrinsecamente diferentes aos demais indivíduos. Como se eles fossem perfeitamente altruístas não pudessem se tornar corruptores ou corruptíveis.
A simples análise de como uma boa parte dos políticos age já é suficiente para descartar a visão de que políticos são seres desinteressados. Pense no loteamento de cargos públicos por políticos que buscam tão somente permanecer no poder. Por isso, só faz sentido pensar em qualquer análise política se considerarmos que todos os indivíduos, seja no setor privado ou público, respondem a determinados incentivos. Identificar se as propostas de reforma política vão ter o objetivo desejado, portanto, significa analisar como essas propostas mudam os incentivos à corrupção e ao processo eleitoral em si.
Portanto, me parece óbvio que, sem mudança nos incentivos, a proibição do financiamento privado não vai impedir que, de fato, haja financiamento privado. Da mesma forma que tornar corrupção um crime hediondo não vai impedir que acontecessem apropriações indevidas de dinheiro público, a letra da lei não mudará a predisposição de pessoas a receber dinheiro ou doá-lo para financiar um partido ou eleger alguém. Note que o caixa dois já era proibido, mas isso não impediu os esquemas de captação obscura de recursos por petistas e tucanos na última década. Imaginar o contrário, me parece, é ignorar tudo que se já se falou sobre política de Marx a Hayek.
Os políticos vão continuar tendo a capacidade de dizer quem vai ter benesses governamentais e quem vai ser prejudicado pela legislação. Logo, as pessoas vão querer influenciá-los. O escopo do poder político continuaria intocado com o financiamento público de campanha. Com isso, ainda haveria enormes incentivos para que grandes grupos econômicos busquem interferir no processo eleitoral.
Isso indica que a eleição não seria menos corrupta. Só que, sob o financiamento exclusivamente público, as relações entre os políticos e os agentes econômicos poderosos se tornariam ainda mais nebulosas. Afinal, oficialmente, toda a campanha viria de dinheiro público. Ao invés de transparência nas doações e uma lista nos jornais ligando diretamente empreiteiras a políticos, teríamos uma total obscuridade. O objetivo deveria ser o oposto: tornar essa relações mais públicas, para que possamos considerar quem está apoiando financeiramente algum candidato na hora de dar a este nosso voto.
Há, ainda, outro elemento prejudicial. Toda democracia estável se baseia em um eficiente sistema de pesos e contrapesos. E o setor privado pode – e deve! – ser mais um elemento nesse sistema.
Mas, afinal, o que é privado? A resposta mais comum que é dada quando se fala de “privado” é que o setor privado são os grandes empresários e empreiteiros. Sem dúvida, esses grupos são poderosos e dão muito dinheiro para campanhas. E, como argumentado acima, eles continuarão a doar dinheiro independentemente da mudança.
No entanto, há outro lado do privado. Há todos nós, isto é, o resto da sociedade brasileira. Indivíduos, sindicatos, ONGs, movimentos sociais, associações de bairro, o Zé da Banca e o Seu Manuel da padaria. Somos todos do setor privado, também. Proibir as doações privadas é proibir a participação política da sociedade – e uma participação que pode ser decisiva no campo político e das ideias.
Você pode achar que isso não tem relevância. Mas meu argumento não é só teoria – há exemplos práticos pra isso. Barack Obama arrecadou 690 milhões de dólares em 2012 – através de doações individuais pela internet. O candidato nanico libertário Ron Paul, que nunca teve chance de ganhar, conseguiu arrecadar 6 milhões de dólares em 24 horas, demonstrando que esse método pode ser uma alternativa para os candidatos não tradicionais ganharem tração e vocalizar seu descontentamento com o status quo. Temos que promover a participação desse privado na política, inclusive, através de doações e financiamentos de campanha. É fortalecimento desse privado que enfraquecerá a força dos grandes empresários e empreiteiros e todas as práticas de corrupção.
Um último efeito colateral da proibição do financiamento das campanhas pela sociedade seria a perpetuação do status quo. A já comum utilização das verbas de propaganda do governo para a autopromoção de um político e do uso dos recursos humanos e materiais do governo para auxiliar na campanha permaneceriam. No entanto, não seria permitido à sociedade um dos meios mais eficientes para balancear isso: apoiar com recursos financeiros candidatos da oposição. Além disso, as verbas seriam divididas conforme a representação dos partidos no Congresso, favorecendo ainda mais as forças atualmente dominantes na política nacional.
Apesar da boa intenção de alguns de seus proponentes, o financiamento exclusivamente público de campanha só fortaleceria os grupos políticos que já estão no poder, não preveniria a corrupção e impediria o apoio financeiro de indivíduos, sindicatos e movimentos sociais a candidatos que desafiam a ordem. E fortalecer o status quo é tudo que os milhares de pessoas que foram as ruas não querem.
* Roberto Xicó é cientista político que era marxista e se tornou liberal na universidade. Ele não sabe como. Só sabe que foi assim. Seus interesses são política, história, MPB e tecnobrega. Ele não vai falar de economia porque acha isso um saco.