Pergunte a um progressista qual o modelo de sociedade que ele defende e a resposta invariavelmente sempre será a mesma: “Defendo o modelo escandinavo, que é a sociedade com o mais baixo grau de desigualdade social!”. Até aí, beleza.

No entanto, se você perguntar a ele que tipo de composição social ele defende, a resposta também será sempre a mesma: “Defendo uma sociedade miscigenada, multicultural, racialmente diversa e formada por todas as etnias possíveis”. E ele jurará não ver aí qualquer tipo de contradição. Eis o fato: é simplesmente impossível querer que uma sociedade multicultural e com ampla mistura de raças, culturas e etnias apresente, ao mesmo tempo, baixa desigualdade social.

Assim começava um artigo publicado pelo Instituto Ludwig von Mises Brasil (retirado do ar, mas estava disponível aqui) sobre o que seria uma verdade politicamente incorreta sobre a desigualdade. Um trecho do texto ainda pode ser lido aqui:

Seria mais apropriado deixar somente o adjetivo “incorreta”, pois a verdade tinha pouco de verdadeira. Vamos discutir ponto a ponto a narrativa do texto, mas antes disso, entender brevemente o que torna um país rico.

Etnias não importam. Instituições importam.

Um país será tão mais rico quanto maior for a sua produtividade, a sua capacidade de produzir mais com menos recursos.

O que aumenta a produtividade de um país? Há duas coisas que na verdade são facetas de uma mesma. Acumulação de capital fixo e de capital humano. No fundo, é a acumulação desses fatores de produção, que se transformam em produto quando utilizados.

Capital humano é o jargão da economia para educação e habilidades que aumentam a capacidade humana de produzir riqueza. Capital fixo são as máquinas, ferramentas, infraestrutura e todo e qualquer bem cujo objetivo não é ser consumido, mas ser usado para produzir bens e serviços.

O gráfico abaixo mostra a correlação entre o estoque de capital por trabalhador e a renda média de cada país.


O que causa acumulo de capital?

A melhor explicação que a economia encontrou foi olhar para as instituições de um país. Ou seu conjunto de regras, formais e informais. Se um país tem direitos de propriedade bem garantidos, mercado de trabalho saudável, ambiente de negócios propício e tudo o mais que os economistas chamam de instituições inclusivas, a população terá incentivos para se educar, poupar e investir. Assim, a riqueza cresce de maneira sustentável e a desigualdade tenderá a ser menor.

Se o conjunto de regras num país premia as conexões com o poder, a extração da renda de terceiros ou não garante a igualdade perante a lei, o que chamamos de instituições extrativas, o oposto ocorre. O incentivo será buscar extrair renda e galgar posições nas corporações com poder político. Um país com essas características dificilmente irá de desenvolver e provavelmente será mais desigual.

Se estiver interessado em um texto mais longo só sobre o assunto, este Mercado já publicou sobre o tema e você pode ler clicando aqui.

Agora sim, podemos avaliar o artigo publicado no Instituto Mises Brasil, ponto a ponto. Os trechos do Mises Brasil são aqueles sublinhados, como abaixo.

“A desigualdade nos países nórdicos é baixa porque sua população sempre foi homogênea.”

Locais com baixa desigualdade tem características comuns. A população tem nível homogêneo de qualificação (no jargão dos economistas, capital humano), além de regras uniformes nos mercados de trabalho e crédito.

Caso não exista uma perseguição institucional contra certa etnia, uma sociedade etnicamente heterogênea não é necessariamente desigual. Ao menos seria a conclusão de quem não vê diferenças naturais entre etnias. No texto, nada foi publicado sobre perseguições institucionais aos negros brasileiros, como a escravidão.

Sociedades etnicamente heterogêneas podem ser desiguais se o acesso a oportunidades é diferente para cada etnia. Ou se uma etnia é inferior à outra e menos capaz de produzir. O texto não responde explicitamente qual a hipótese defendida.

O que explica a abissal desigualdade brasileira?

Muitas causas. O histórico de hiperinflação é um exemplo do século XX. Mas em grande medida, nossa desigualdade é fruto do acesso desigual à educação.

Países nórdicos não tem baixa desigualdade por serem etnicamente homogêneos. Em grande medida, o acesso à educação é quase irrestrito há um bom tempo, seja qual for sua origem.

“Já a desigualdade em países como EUA e Brasil é alta porque, dentre outros fatores, sempre houve uma enorme mistura cultural, étnica e racial nestes países”

Muito mais relevante, no caso dos dois países, é a presença da escravidão e diversidade regional na qualidade das instituições.

Tanto no Brasil quanto nos EUA, encontramos políticas de colonização variadas, com efeitos enormes e duradouros sobre a qualidade local das instituições e a delimitação de direitos de propriedade, como mostraram brilhantemente Acemoglu, Johnson e Robinson.

O sul dos EUA esteve muito abaixo do norte em termos de produtividade (e, consequentemente, riqueza) porque teve um conjunto extrativo de instituições que negava à parcela negra da população acesso a educação de qualidade e ingresso em um mercado de trabalho e de crédito saudável. No caso brasileiro, como mostraram Claudio Ferraz, Rudi Rocha e Rodrigo Soares, os programas de imigração patrocinada para cidades do interior sulista e paulista contribuíram de maneira persistente para o estoque de capital humano dessas regiões. Graças a isso, os destinos de imigrantes possuem menor desigualdade e renda média maior.

“Querer, como pretendem os progressistas, que haja uma sociedade miscigenada e multicultural, e que, ao mesmo tempo, ela apresente uma igualdade nórdica, é querer a quadratura do círculo. E isso é empiricamente comprovado.”

Simplesmente não é verdade que seja empiricamente comprovado. A evidência aponta que homogeneidade étnica pouco tem a ver com desigualdade. Há países etnicamente heterogêneos com baixa desigualdade e vice-versa.

A Bolívia é um país muito mais heterogêneo que o Chile, mas tão desigual quanto. Canadá e Austrália são sociedades de imigrantes do todos os cantos do mundo e pouco desiguais, quase tanto quanto os países nórdicos. Os próprios países nórdicos não são tão homogêneos. Noruega e Suécia têm cerca de 15% da população composta de imigrantes.

Para fins de comparação, no Brasil, imigrantes são pouco mais de 2% da população. Sob o critério de agrupar etnias diferentes com base no tom de pele, podemos pensar na Botsuana. É um dos países mais desiguais do mundo e é etnicamente homogêneo. O que causa essa desigualdade é obviamente a qualidade institucional adversa em cada país.

Nem todo argumento com dados é empiricamente sólido

O texto prosseguia listando as 15 cidades menos desiguais do Brasil, todas no Sul. Há aí uma confusão clássica: correlação e causalidade. Existem várias técnicas estatísticas para inferir relações de causalidade, como por exemplo RDDs e Variáveis Instrumentais. Nenhuma delas consiste em mostrar correlações.

Frio e renda tem uma conhecida correlação espúria. Se o texto publicado no Mises Brasil comprovasse qualquer coisa empiricamente, bastaria esfriar o Brasil para ficarmos ricos. Dizer que uma suposta homogeneidade étnica – como se eslavos, latinos e germânicos fossem a mesma coisa – é responsável pela baixa desigualdade da região Sul é tão válido quanto inferir que a causa está no consumo de chimarrão.

O Brasil não é terrivelmente desigual porque sua população é mestiça. Nosso mal vem de décadas de inflação elevada, dos nossos astronômicos salários da elite do funcionalismo público, de leis trabalhistas excludentes e de abismal disparidade no acesso à educação. Afirmar o contrário não é politicamente incorreto, nem corajoso. É apenas incorreto.


Nota: O Instituto Mises Brasil retirou o artigo do ar por não ter seguido o procedimento padrão do site, sem comentar explicitamente as acusações de racismo. Após polêmica em redes sociais, publicou-se no lugar um texto de Raphael Lima criticando o anterior, que pode ser lido aqui. Nele, Raphael critica o texto por se preocupar com o multiculturalismo e desigualdade, que seriam duas questões irrelevantes, além de defender que “tolerância é um valor moral, e como todo valor moral é uma escolha”.

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