Poucos assuntos são tão politizados quanto a posse de armamentos e sua relação com a violência. Ambos os lados dessa questão – aqueles que querem restringir o acesso a armas e aqueles que querem ampliá-lo – são dotados de argumentos razoáveis e munidos de dados específicos para sustentar seu argumento. Além disso essa é uma contenda que transcende barreiras ideológicas. Se, por um lado, o deputado militarista Jair Bolsonaro defende o armamento civil, também o PCO – aquele partido do “quem bate cartão não vota em patrão” – defende que uma população mais armada pode ajudar no combate ao crime.

Mas quem está certo nessa história? A resposta mais correta é que ambos estão parcialmente certos, mas as conclusões dos dois lados estão erradas.

 

“Mais armas, mais crimes” ou “mais armas, menos crimes”?

Provavelmente você já ouviu dois argumentos contraditórios e razoáveis. Aqueles favoráveis ao desarmamento dizem que, com menos armas disponíveis, vai ser mais difícil para os criminosos cometerem crimes violentos. Já aqueles que apoiam o armamento civil dizem que, dada a baixa probabilidade que civis tenham armas, criminosos estarão mais dispostos a atacá-los, já que o risco de retaliação é baixo.

O que os dois lados não percebem é que, na verdade, esses efeitos não são mutuamente excludentes. Ao racionalizar os incentivos e desincentivos ao crime de determinada política (algo que juristas e economistas chamam de “análise econômica do direito”), uma postura mais neutra leva à observação de que a disponibilidade de armas na verdade tem dois efeitos simultâneos sobre a violência:

  1. Efeito promotor. Do mesmo jeito que ocorre com as drogas, proibir o comércio de armas reduz a oferta total de armas e, com isso, aumenta o preço das armas no mercado ilegal. Isso não significa que vai ser impossível para criminosos comprar armas – mas significa que vai ser mais caro – e o esperado é que, por causa desse custo mais alto, criminosos tenham menos acesso a armas. Em resumo, o efeito promotor de violência das armas é: se as armas forem legalizadas, o preço de armamentos tenderá a cair, o acesso de criminosos a elas aumentará, e mais violência ocorrerá.
  2. Efeito dissuasório. Criminosos, como todos os outros seres humanos, são avessos ao risco. Isso não significa que a aversão ao risco deles é a mesma dos não-criminosos, mas simplesmente que, tudo o mais constante, eles prefeririam correr menor risco – por exemplo, eles prefeririam que ninguém à exceção deles tivesse armas – e maiores riscos devem ser compensados por recompensas maiores. Em resumo, o efeito dissuasório de violência das armas é: com armas legalizadas, o acesso a elas pela população civil será maior e a incerteza sobre se os civis vítimas de crimes estarem armados aumentará. Com isso, o risco para o criminoso também aumenta e, sendo ele avesso ao risco, ele tenderá a cometer menos crimes.

Armas, na verdade, provocam esses dois efeitos contraditórios. Por um lado, elas aumentam os crimes, por outro, diminuem. Uma vez que se admite a existência desses dois efeitos, o que importa, para os efeitos de política pública, portanto, é o efeito líquido dos armamentos:

efeito líquido das armas sobre a violência = (efeito promotor) – (efeito dissuasório)

E qual é o efeito líquido empírico?

Fenômenos como a violência são complexos. É só pensar que existe uma miríade de variáveis que podem potencialmente interferir sobre a violência: pobreza, desigualdade, educação, cultura, racismo, machismo, etc. Por isso, isolar qual o efeito específico de políticas sobre armas sobre esse fenômeno complexo é uma tarefa difícil – o que não significa que não possa ser feito com as ferramentas estatísticas apropriadas.

Dada essa dificuldade, mesmo depois de controlados por todos esses fatores, não é de se estranhar que haja estudos que encontram uma relação positiva entre acesso a armas e mortes por armas e outros que dizem que mais armas levam a menos homicídios. Muitas vezes, a conclusão é guiada por qual indicador se escolhe para a análise.

Veja os dois gráficos abaixo, por exemplo. Eles comparam a restrição da legislação sobre armas com taxas de morte violenta nos diferentes estados americanos. Se for utilizada a taxa de mortes com armas, parece haver uma relação entre violência e uma legislação mais restritiva. Já se for usada a taxa de homicídio total, essa relação desaparece.

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Como isso é possível? O primeiro elemento é que o primeiro gráfico inclui suicídios. Embora suicídios sejam importantes, em termos qualitativos e morais, eles são diferentes do uso da violência contra outras pessoas. Até por isso, quando militantes pelo desarmamento argumento, usualmente fala-se na violência contra terceiros. Uma outra possibilidade é que exista uma substituição: caso potenciais homicidas não tenham acesso a armas, eles simplesmente passariam a buscar outros métodos para cometer seus crimes. Com isso, a taxa total de homicídios não seria afetada, mas a taxa de homicídios por armas sim.

Quando a gente observa resultados contraditórios de estudos sérios sobre problemas complexos como esse, a melhor resposta que nós podemos encontrar está em chamadas “meta-análises”. Essas “meta-análises” agregam diversos estudos estatísticos e chegam num único resultado. A ideia é que, embora os diversos estudos possam ter problemas, quando eles são agregados, o viés tende a desaparecer. A mais importante das meta-análises sobre esse assunto é um estudo da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos (NAS), de 2002. Após revisar centenas de estudos, a NAS concluiu:

“a despeito de ampla pesquisa [sobre o assunto], o comitê não encontrou nenhuma evidência robusta de que o direito ao porte de armas aumenta ou diminui crimes violentos” (NAS, p. 3).

Ou seja, o efeito líquido do mais fácil acesso a armas seria indistinguível de zero (o que, no jargão estatístico, se chama de “estatisticamente insignificante”).

Comparando-se taxas de homicídio e posse de arma per capita nos países ricos – aqueles membros da da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômicos, que incluem a Europa Ocidental, EUA, Canadá, Japão e alguns outros países como Chile, México e Turquia -, a relação também parece ser próxima de zero. Isso se mantém mesmo quando excluídas as exceções estatísticas, que podem estar distorcendo o resultado geral (como o México, por exemplo, que tem taxas de homicídio altíssimas, mas por causa dos carteis de droga e não por causa de armas). Veja abaixo.

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As contradições de resultados e e as ausência de relação capturada pelas meta-análises mostram uma coisa: você deve ser bem cético em frente a qualquer um que faça afirmações peremptórias indicando que armas reduzem ou aumentam a violência. Nesse caso, tanto armamentistas quanto desarmamentistas estão errados. Quando se agrega centenas de estudos e se controla por diversos fatores, o efeito líquido parece ser próximo a zero.

 

Tá, e o Brasil?

Embora os melhores estudos disponíveis sobre o estudo tenham como foco os EUA, é importante ver quais dados estão disponíveis no Brasil. Uma boa parte dos estudiosos tenta usar o estatuto do desarmamento como um ponto de descontinuidade na taxa de homicídios no Brasil. A ideia é que, se todas as outras variáveis que determinam os homicídios mantiverem sua tendência anterior e uma única coisa mudar (nesse caso, a legislação sobre armas), essa variável que mudou será o que explica qualquer mudança nos homicídios. Essa é uma estratégia razoável e, a primeira vista, o Estatuto do Desarmamento parece ter tido efeito na redução de homicídios por armas de fogo. Veja abaixo.

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Daniel Cerqueira, economista que escreveu sua ótima tese de doutorado sobre o assunto usando dados de municípios paulistas, acha uma relação similar. Isso é suficiente para concluir que menos armas levam a menos crime? Talvez. O problema é que Cerqueira, quando calcula estatisticamente a relação entre a taxa de homicídios e a taxa de posse de armas (chamada em economês de “elasticidade”), acabou por ignorar outras variáveis importantes para a taxa de homicídios que passaram por uma mudança histórica mais ou menos na mesma época em que a taxa de homicídios passou a cair no Brasil: a desigualdade de renda e a taxa de pobreza.

O gráfico abaixo mostra a relação entre o desvio dos homicídios por armas e da desigualdade de renda (medida pelo índice de gini) de suas tendências históricas. Embora não seja possível dizer que haja causalidade entre elas, há uma correlação significativa entre as duas variáveis.

desigualdade

É possível fazer uma análise similar utilizando dados comparando a taxa de pobreza com a taxa de homicídios. A pobreza, que pode certamente influenciar na taxa de homicídios, caiu a níveis historicamente muito baixos a partir de 2003 – o que coincide com a promulgação do Estatuto do Desarmamento. Isso complica a presunção de que tudo o mais se manteve constante e que a causa na queda dos homicídios tem de ser explicada pelo Estatuto e inviabiliza essa estratégia do ponto de descontinuidade.

pobreza

Um bom analista reconheceria que, do mesmo modo que é razoável a hipótese de que o Estatuto do Desarmamento pode ter reduzido a criminalidade, também é razoável pensar que foi a redução da desigualdade ou da pobreza que levou a tal mudança na taxa de homicídios por arma de fogo. Até mesmo pelo fato desse assunto ainda não ter sido estudado com tanta profundidade no Brasil como nos EUA, essa ainda parece uma questão em aberto. A posição cética de que não há evidências suficientes para nenhum dos lados dessa celeuma ainda parece ser a postura mais honesta.

 

Conclusão (resumo tl;dr)

Em teoria, armas podem tanto promover quanto dissuadir crimes. Portanto, o que importa para a análise de políticas públicas de acesso a armas é o efeito líquido dessa relação simultânea de promoção e dissuasão. Quando agregados em meta-análises, os melhores estudos sobre o tema – conduzidos nos EUA – indicam que o efeito líquido parece ser próximo de zero. Nos países ricos (membros da OCDE), também não há sequer correlação entre homicídios e taxas de posse de armamentos. No Brasil, a questão ainda está em aberto: é possível que o Estatuto do Desarmamento tenha reduzido homicídios por arma, mas sem considerar outras variáveis importantes – como a queda na desigualdade e na pobreza – é impossível confiar nos resultados. No fim, tanto desarmamentistas quanto armamentistas parecem estar errados: armas nem aumentam nem reduzem crimes. A evidência disponível indica que, provavelmente, elas simplesmente não importam.

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