Por Paul Krugman, com tradução de Pedro Menezes

Por muitos anos, um imenso lixão em Manila, conhecido como ‘Smokey Mountain’ (Montanha de Fumaça, em tradução livre), foi utilizado na mídia como símbolo da pobreza no terceiro mundo. Milhares de homens, mulheres e crianças viviam no lixão – convivendo com moscas, fedor e resíduos tóxicos, sobrevivendo graças à venda de pedaços de metal e outros materiais recicláveis achados por lá. Todos viviam no lixão voluntariamente, dado que viver ali em troca de mais ou menos 10 dólares diários parecia a melhor dentre as alternativas disponíveis àquelas famílias.

A pobreza ao redor do mundo não foi inventada por corporações multinacionais egoístas. Mas, se é verdade que grandes capitalistas ganham muito com a globalização, também é verdade que os grandes beneficiários neste processo são, claramente, os trabalhadores de países pobres.

Hoje, não há quem viva no lixão; todas as famílias foram removidas pela polícia numa operação cosmética dedicada a “limpar” a cidade antes de um megaevento com autoridades do Pacífico. Mas me peguei pensando na ‘Smokey Mountain’ recentemente, enquanto destrinchava os e-mails raivosos que chegava à minha caixa de entrada.

Na ocasião, escrevia um editorial para o New York Times, argumentando que por piores que fossem os salários e condições de trabalho em fábricas no Terceiro Mundo, o avanço era nítido se comparado com a situação anterior dos trabalhadores, quando predominava uma pobreza rural e menos visível. Quando escrevi o texto, deveria ter imaginado as mensagens que viriam, com comentários irônicos como “Pois bem, se um dia você vier a perder seu confortável emprego de professor universitário nos Estados Unidos, fique tranquilo porque sempre há uma oportunidade de emprego no terceiro mundo — desde que você seja uma criança de 12 anos disposta a receber não mais do que 40 centavos de dólar por hora”.

Este tom de revolta moral é comum dentre os opositores da globalização — ou seja, opositores da transferência de capital e tecnologia dos países ricos aos países pobres, assim como o crescimento, no Terceiro Mundo, da produção de manufaturas para exportação. Estes críticos consideram, como se fosse um fato incontestável e dado pela natureza, que toda e qualquer pessoa que elogie o processo de globalização o faz por ser ingênua ou corrupta e, sendo assim, uma agente de facto do capitalismo global em sua opressão aos trabalhadores de todo o mundo.

Mas o assunto não é tão simples e as linhas morais na discussão não são tão claras. Deixe-me fazer uma contra-acusação: O tom moralista e arrogante de alguns opositores da globalização só é possível porque eles não refletiram o suficiente sobre seus argumentos. Se por um lado é verdade que grandes capitalistas ganham muito com a globalização, por outro, os grandes beneficiários neste processo são, claramente, os trabalhadores de países pobres.

A pobreza ao redor do mundo não foi inventada por corporações multinacionais egoístas. Basta olhar para o que o Terceiro Mundo era algumas décadas atrás – e para o que, em alguns países, ainda é. Até então, embora o rápido crescimento econômico de algumas nações asiáticas específicas tenha se destacado, países emergentes como Indonésia e Bangladesh ainda eram como sempre foram: exportadores de matérias primas, importadores de produtos manufaturados. Algumas indústrias locais, ineficientes e protegidas por políticas protecionistas, serviam ao mercado interno, mas geravam poucos empregos. Enquanto isso, a pressão populacional levava pobres camponeses a cultivar a terra disponível ou manter a própria subsistência como fosse possível – ainda que, para isso, precisassem viver numa montanha de lixo tóxico.

Por conta da falta de alternativas, sempre foi possível contratar trabalhadores em Jakarta ou Manila pagando salários baixíssimos. Ainda assim, em meados dos anos 70, a mão de obra barata não era suficiente para permitir que países em desenvolvimento produzissem bens manufaturados para os mercados globais. As vantagens intrínsecas às economias desenvolvidas — melhor infraestrutura, mão de obra especializada e qualificada, vivacidade dos mercados internos, estabilidade política, etc — sempre compensaram os altos salários pagos aos trabalhadores locais, mesmo quando a disparidade era de 10 ou 20 vezes mais.

Nos lugares onde este processo segue por tempo suficiente — como na Coréia do Sul ou Taiwan — os salários se aproximam daquilo que recebe um adolescente americano que trabalha na McDonald’s. Eventualmente, com o tempo, já não haverá ninguém disposto a morar num lixão.

E então algo aconteceu. Uma combinação de fatores que ainda não fomos capazes de compreender inteiramente — barreiras tarifarias mais baixas, novas tecnologias de comunicação, transporte aéreo mais barato, etc — diminuíram as desvantagens de produzir em países pobres. (Em alguns casos, ainda é melhor produzir em nações desenvolvidas. Não são raras as historias de empresas que transferiram sua produção para o leste asiático ou o México e, após alguns anos, desistiram da ideia por conta das desvantagens do ambiente de negócios no Terceiro Mundo). Em um número significativo de setores, baixos salários permitiam que países em desenvolvimento entrassem no mercado mundial. E, assim, países que até então produziam apenas frutas ou café passaram a vender camisetas e tênis vendidos em todo o mundo.

Os operários das fábricas de camisetas e tênis recebiam, inevitavelmente, baixos salários em péssimas condições de trabalho. Digo “inevitavelmente” porque o objetivo do empregador não é zelar pela saúde de quem trabalha em sua empresa; eles pagarão o menor salário possível, e mesmo esse valor é determinado pelas outras opções de emprego disponíveis aos trabalhadores. E tratam-se de países extremamente pobres, onde a vida num lixão pode soar atraente quando comparada às alternativas.

Onde quer que as indústrias para exportação tenham crescido, houve também uma melhora considerável na vida da população. Em parte, isso aconteceu porque uma nova indústria precisa oferecer um salário maior para atrair os trabalhadores. Mais importante ainda é a reação em cadeia desencadeada pelo crescimento da manufatura – e dos outros empregos indiretamente criados à sombra dela. A pressão sobre a terra é atenuada e, então, a renda da população rural cresce; diminui a quantidade de desempregados e as empresas passam a competir umas com as outras pelos trabalhadores, fazendo crescer também a renda da população urbana. Nos lugares onde este processo segue por tempo suficiente — como na Coréia do Sul ou Taiwan — os salários se aproximam daquilo que recebe um adolescente americano que trabalha na McDonald’s. Eventualmente, com o tempo, já não haverá ninguém disposto a morar num lixão. (A ‘Smokey Mountain’ persistia porque as Filipinas, até recentemente, não havia entrado no ciclo de crescimento-por-exportação que já era realidade em países vizinhos. Salários maiores do que alguns trocados ainda são poucos.)

Os benefícios do crescimento econômico através de exportações em economias de industrialização recente não são controversos. Um país como a Indonesia é tão pobre que o desenvolvimento local pode ser medido em quanto um trabalhador médio consegue comer; desde 1970, a renda per capita cresceu de 2,100 para 2,800 calorias diárias. Um terço dos jovens ainda sofrem com a desnutrição – mas em 1975, eram mais do que a metade. Esta melhora não ocorreu porque pessoas ricas do Ocidente ajudaram de alguma forma — as doações estrangeiras, que nunca foram vultuosas, diminuíram de lá para cá. A causa também não está na melhoria das políticas públicas, e os governos locais seguem danosos e corruptos como sempre. Trata-se, na verdade, do resultado indireto e não-intencional das ações de multinacionais e empreendedores locais, que nunca tiveram outro objetivo além de aproveitar as oportunidades de lucro que surgem por conta da mão de obra barata. Não é algo edificante ou caridoso; mas as motivações são secundárias quando o resultado são centenas de milhões de pessoas saindo da miséria absoluta para uma situação que, apesar de muito ruim, é incomparavelmente melhor.

Sendo assim, de onde surge a raiva dos que enviam e-mails a mim? Por que a imagem de um indonésio recebendo 60 centavos por hora para costurar um tênis choca mais do que a do mesmo indonésio tentando alimentar sua família com o equivalente a 30 centavos por hora colhidos em uma pequena plantação — ou a de um filipino escavando um lixão?

Acho que a principal explicação está em um sentimento de preciosismo egoísta e superficial. Ao contrário do camponês faminto que planta para subsistência, as mulheres e crianças da fábrica de tênis estão produzindo o que será consumido por nós (o que inclui você, leitor) – e isso faz com que nos sintamos sujos. Por isso existe tanto clamor pelo estabelecimento de padrões internacionais para condições de trabalho. Nós não deveríamos, segundo dizem os opositores da globalização, comprar aquelas camisas e tênis, a menos que as pessoas que os fabricam passem a trabalhar por um salário e condições de trabalho dignas.

O pedido parece justo — mas será que é? Basta pensar nas consequências.

Antes de tudo, mesmo se pudéssemos assegurar bons salários aos trabalhadores do Terceiro Mundo que produzem para exportação, isso em nada mudaria a realidade dos camponeses, garis e demais setores que compõem a maior parte da população desses países. Forçar a adesão a padrões trabalhistas internacionais poderia até criar uma aristocracia privilegiada de trabalhadores com acesso aos direitos legalmente garantidos, mas em nada afetaria a maioria da população local.

E talvez nem isso seja possível. As vantagens de indústrias consolidadas no Primeiro Mundo ainda são consideráveis. A única razão pela qual países em desenvolvimento tem conseguido competir na produção de alguns bens é justamente a mão de obra barata. Negue esta capacidade a eles e você estará também negando a grande chance de alcançarem um progresso industrial contínuo, podendo até mesmo reverter a melhora que já foi alcançada em tempos recentes. Por mais feio e injusto que pareça, o desenvolvimento econômico desencadeado pela exportação de manufaturas gerou prosperidade nesses países, e tudo o que vier a dificultar este processo será frontalmente contrário aos interesses dos trabalhadores locais. Uma política que garanta boas condições de trabalho na teoria e nenhum trabalho na prática pode até aliviar consciências, mas certamente faria um grande mal àqueles que – segundo dizem – seriam os beneficiários.

Você pode me dizer que os semeadores da terra não podem ser forçados a servir os ricos como costureiros de tênis. Mas qual a alternativa? Eles deveriam esperar a ajuda de doações externas? Talvez — embora a história de regiões como o Sul da Itália mostrem que este tipo de doação não gera muita coisa além de dependência perpétua. Ainda assim, não há nenhum motivo para esperar uma doação em quantia suficiente neste momento. Os governos do Terceiro Mundo deveriam trabalhar melhor para permitir alguma justiça social? Certamente, mas eles não vão — e se o fizerem, não será por causa do meus pedidos. Enquanto ninguém apresentar uma alternativa realista à industrialização baseada em baixos salários, quem se opuser à globalização mostra apenas que está disposto a manter seres humanos num estado material miserável apenas porque não querem ferir as suas próprias sensibilidades.

Meus correspondentes não têm qualquer direito à hipocrisia. Apesar dos e-mails raivosos, eles não refletiram o suficiente sobre o assunto. E, quando se trata da esperança de milhões de pessoas, refletir a sério sobre um assunto não é apenas um bom hábito intelectual. É um dever moral.

Paul Krugman é economista, professor na Universidade de Princeton e vencedor do Prêmio Nobel em 2008. Nos últimos anos, destacou-se como colunista do New York Times, sendo amplamente considerado desde então um dos principais pensadores da esquerda americana.

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